Varejista Bemol quer bancarizar o interior da Amazônia (e enfrentar Nubank e Bradesco)

Rede lança a Conta Bemol, com aplicativo, cartão, saque, depósitos e empréstimos; lojas físicas e presença em 73 cidades são a aposta para bater a concorrência

O aplicativo do Conta Bemol, produto financeiro lançado pela rede varejista
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Depois de engendrar uma ‘Amazon da Amazônia’ para criar um ecommerce caboclo, a Bemol, maior varejista da região Norte, agora quer bancarizar as populações do interior da floresta.

A rede, que faturou R$ 3 bilhões no ano passado, começa a oferecer na próxima segunda a Conta Bemol, com aplicativo, cartão, saque, depósitos e empréstimos. Tudo sem tarifas, como em qualquer banco digital que se preze.

A conta será oferecida nos 78 dos 150 municípios da Amazônia Ocidental onde a rede já está presente, especialmente nas 37 lojas físicas – na maioria das localidades a companhia atua por meio de quiosques com representantes que usam a infraestrutura do ecommerce, mas sem uma loja. 

A meta é chegar a 100 mil contas ativas até o fim do ano, e o jogo começa com 5 mil contas que foram ativadas na fase de testes. Cerca de 4 mil delas são dos colaboradores do próprio grupo, que agora passam a funcionar como agentes multiplicadores, recebendo um incentivo de R$ 5 para cada novo cliente que trouxerem para dentro de casa.

O objetivo extrapola a bancarização – por si só um desafio de grande proporção.

“Estamos matutando há muito tempo como será nossa estratégia de longo prazo no interior da Amazônia. A ideia é montar um ecossistema de relacionamento com o cliente muito profundo, que passa por varejo, farmácia, internet e conta”, diz Denis Minev, CEO da rede. “Olhando para múltiplos negócios conseguimos extrair uma rentabilidade somada de todos eles e diminuir o ponto de break even de vários.”

A Conta Bemol não é um banco mas a ideia é disponibilizar muitos dos produtos e serviços bancários. A infraestrutura do novo negócio fica por conta do banco BV, mas a interface com o cliente é toda Bemol.

Há dois mercados-alvo. No interior da Amazônia estão na mira os ribeirinhos, quem está na informalidade do sistema financeiro, muitas vezes tomando dinheiro de agiotas e que nunca apareceu na base da Serasa ou do SPC.

“É com esse público que achamos que teremos a maior vantagem. Para muitos dos nossos clientes do varejo no interior, fomos a primeira fonte de crédito formal.”

As capitais também interessam, mas nelas será preciso brigar com a Caixa, por conta do pagamento de benefícios governamentais, e principalmente com Bradesco e Nubank.

O Bradesco, diz Minev, é fisicamente presente, mas é caro. Já o Nubank é isento de tarifas e tem penetração impressionante nas capitais –, além de ser muito competente em descobrir quem merece ter acesso a crédito. “No nosso centro de distribuição de Boavista, por exemplo, temos 25 colaboradores e 70% deles têm conta no Nubank.” 

Em Manaus, a cliente típica do banco deve ser uma mulher de 35 a 55 anos, que compra financiado e que todos os meses vai à loja pagar a prestação. “Essa cliente tem conta em banco, mas usa como cofre. Saca o dinheiro e vem pagar o boleto na loja, não usa cartão. É a sociologia vencendo a tecnologia.”

Minev também acredita que nos ambientes urbanos a conta poderá resolver um problema de acesso à geração Z, que tem menor fidelidade à marca Bemol. 

Bricks and bits

Para entender o alcance do que a Bemol pretende – e as dificuldades adiante –, é preciso conhecer um pouco da realidade bancária dos interiores da floresta: fora das capitais e cidades mais estruturadas não existem agências ou caixas eletrônicos.

Numa localidade típica, o dinheiro chega em voos mensais e é direcionado diretamente para o banco postal ou lotérica, onde não raro as filas de gente à espera já estão grandes. Todo mundo faz seus saques e paga suas contas e em poucos dias o dinheiro vivo já desapareceu de novo. Todas as transações passam a ser anotadas em caderninhos e só serão saldadas quando o próximo avião pousar.

Denis Minev acredita que a Conta Bemol nasce com duas vantagens sobre os concorrentes para enfrentar esse cenário.

A primeira são os pontos de atendimento. “Qual a grande dificuldade de um Nubank ou qualquer banco digital no interior da floresta? Não tem como depositar dinheiro na conta de maneira prática”, diz. 

A ideia é que os clientes da Conta Bemol possam desde já depositar dinheiro nas 37 lojas da rede. Mais adiante será possível também realizar saques. Dentro do app, será possível fazer o mesmo que em qualquer conta digital dos concorrentes. 

A segunda vantagem é a rara base de dados construída dentro do ecossistema de negócios do grupo. Por meio do crediário concedido aos clientes – 80% das vendas da rede são financiadas –, a Bemol já começou a ensaiar sua operação bancária nos últimos anos.

Minev toma como exemplo o município de Autazes, a 100 quilômetros de Manaus, para explicar como essa base vem sendo construída. Lá, a Bemol tem hoje um cadastro de 14 mil pessoas, de um total de 37 mil habitantes. “Suspeito que ninguém tem um cadastro de 14 mil pessoas lá.”

De posse desses cadastros, a rede passou a conceder um limite de crédito de R$ 100 por pessoa para compras na loja. Passado algum tempo, cerca de 3 mil pessoas se tornaram inadimplentes.

“Mas temos os outros 11 mil para quem continuamos emprestando e que agora tomam um volume de crédito maior. Considero que os dados que temos são os melhores possíveis para conceder empréstimo em Autazes”, diz ele.

Por enquanto, o crédito está muito atrelado ao financiamento dos produtos vendidos na loja. Mas a rede vem testando a concessão de empréstimos em que o cliente sai com dinheiro em vez de geladeiras. 

Considerando toda a Amazônia Ocidental, a rede tem hoje 3 milhões de clientes cadastrados que já foram financiados. Desses, cerca de 800 mil estão com atrasos superiores a seis meses. Os outros 2,2 milhões seguem tendo acesso a crédito, sendo que cerca de 1 milhão já tomam empréstimos em dinheiro, com taxas que vão de 2,9% a 9,9% ao mês, dependendo do risco.

Recentemente, a rede lançou também um empréstimo na modalidade de home equity, em que o imóvel entra como garantia, permitindo a redução de taxa. Os juros vão de 0,9% a 2,2% mais IPCA ao mês, com prazos de até 20 anos e limites de até R$ 300 mil reais.

Agora, a ideia é tentar convencer os clientes a abrir suas contas e ‘tombar’ essas operações para dentro delas. Com isso, será possível aprofundar a estratégia de fidelização: quem fizer compra na loja vai receber cash backs na conta, podendo usá-los inclusive para pagar boletos de outras despesas. “Vamos misturando os negócios de tal forma que você cria um ecossistema de muitas vantagens para alguém que seja fiel”, diz Minev.

WeChat da floresta

A ambição máxima é transformar a Conta Bemol numa espécie de WeChat da floresta.

Atrasada no processo de bancarização, a China ainda não tinha uma estrutura de cartões de crédito e débito instalada quando o aplicativo de conversa surgiu e implantou um sistema de pagamento peer-to-peer, que conecta diretamente as pessoas.

Hoje, o WeChat é um superapp, que oferece rede social, comércio eletrônico, serviços financeiros, delivery de comida, transporte e assim por diante.

“Dentro do Brasil, o interior da Amazônia é o lugar mais provável de um modelo desses dar certo. Queremos que o dinheiro circule dentro da Bemol, sem necessidade de pagar comissões para bandeiras de cartão”, diz, admitindo que a chegada do Pix, lançado pelo Banco Central, tirou um tanto da vantagem que o grupo pretendia oferecer.

O próprio empresário reconhece que essa última milha do plano é mais complicada de se atingir.

“Mas não é com todo mundo transacionando dentro da Conta Bemol que vamos ganhar dinheiro. Queremos ter mais dados para ser o melhor concessor de crédito de cada município. Tem espaço para ser bem rentável, calibrando melhor as taxas de acordo com o perfil de risco de cada cliente.”