STF reconhece Acordo de Paris como tratado de direitos humanos (e por que isso importa)

Decisão abre portas para futuros questionamentos sobre a compatibilidade entre leis e políticas climaticamente relevantes e o Acordo de Paris, escreve Caio Borges, do iCS

STF reconhece Acordo de Paris como tratado de direitos humanos (e por que isso importa)
A A
A A

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu na última sexta-feira o julgamento da primeira ação climática de sua história, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 708 (ADPF 708), que versa sobre a omissão do governo em destinar recursos do Fundo Clima, criado em 2009 para apoiar projetos de enfrentamento às mudanças climáticas.

O STF julgou a ação inteiramente procedente, por maioria de 10×1. 

O tribunal firmou a tese proposta pelo relator, Ministro Luís Roberto Barroso, de que o Poder Executivo tem o dever constitucional de fazer funcionar e alocar anualmente os recursos do Fundo Clima, para fins de mitigação das mudanças climáticas. Pela decisão, está vedado seu contingenciamento, à luz das normas constitucionais e internacionais que protegem o meio ambiente e os direitos humanos e também em função da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A decisão do STF despertou enorme atenção em todo o mundo, por duas razões. Primeiro, porque tratou de um assunto central na agenda climática global e que constitui um dos pilares do Acordo de Paris, o financiamento climático.

Segundo, porque foi a primeira vez que uma corte constitucional equiparou o Acordo de Paris a um tratado de direitos humanos. No ordenamento jurídico brasileiro, isso significa que o Acordo de Paris passa agora a ter um status privilegiado, ocupando uma posição superior às leis ordinárias e outras normas inferiores, como decretos do Poder Executivo (“supralegalidade”). 

Esse entendimento abre portas para futuros questionamentos sobre a compatibilidade entre leis e políticas climaticamente relevantes, como as que versem sobre geração e distribuição de energia, proteção de florestas, processos industriais, dentre outras normas setoriais e transversais, e o Acordo de Paris.

Financiamento climático

Para além do avançado e mundialmente inédito entendimento do STF sobre as questões jurídicas envolvidas, é importante reconhecer a decisão da mais alta corte do país como uma contribuição ímpar do Poder Judiciário ao destravamento do tão necessitado financiamento climático para a transição a uma economia de zero carbono (net zero).

Estima-se que essa transição irá demandar cerca de US$ 125 trilhões de dólares de investimentos até 2030, segundo o estudo “Net Zero Financing Roadmaps”, encomendado pelos High-Level Champions das Nações Unidas.

Para se ter uma noção do desafio, para que o objetivo de net zero seja atingido em linha com a meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento a 1.5 °C, os investimentos em descarbonização entre os anos de 2021-2025 precisam triplicar em relação aos investimentos realizados entre 2016-2020. 

Na área de uso da terra e agricultura, os dois principais setores responsáveis pelas emissões brasileiras, serão necessários investimentos de pelo menos US$ 1,5 trilhão.

Na COP 26, múltiplas instituições estabeleceram a Glasgow Financial Alliance for Net Zero (GFANZ), iniciativa criada com o compromisso de que o capital privado poderia prover até US$ 100 trilhões para a transição, o que representa cerca de 70% do total de investimentos necessários até 2030. 

Há, portanto, uma lacuna a ser preenchida de pelo menos US$ 25 trilhões, o que sinaliza que governos deverão direcionar recursos orçamentários para a transição.

O papel dos governos

Mas, mais do que preencher as lacunas expressas em números, a atuação governamental no financiamento climático cumpre outros papéis fundamentais. Um deles é o de prover capital para investimentos em tecnologias, empresas e projetos voltados à descarbonização que o financiamento privado ainda considera como de alto risco. 

Por meio de uma gama de instrumentos financeiros, como subvenções, empréstimos (concessionais ou não concessionais), garantias e parcerias público-privadas, os governos podem viabilizar projetos verdes que não sairiam do papel em razão da alta percepção de risco do setor financeiro privado (de-risking), ou por falhas de mercado.

O fato de que o capital privado cumprirá papel preponderante no financiamento para a economia de zero carbono não reduz, portanto, a importância do financiamento público. Primeiro, porque como já demonstrado, as duas fontes se complementam, e não se excluem. 

Segundo, porque o financiamento climático público constitui-se em verdadeira política pública, estando, portanto, sob o manto de todo o quadro jurídico que orienta a formulação e a implementação dessas políticas. Isso inclui a necessidade de que o Poder Público aja em conformidade com as regras constitucionais de proteção ao meio ambiente (Art. 225) e de proteção aos direitos fundamentais em geral.

No julgamento, o STF reconheceu o Fundo Clima como o principal instrumento federal voltado ao custeio do combate às mudanças climáticas e ao cumprimento das metas do Brasil de redução de emissão de gases de efeito estufa. A corte notou que o governo manteve o fundo inoperante por dois anos e não acatou as justificativas apresentadas pela defesa da União a respeito dessa paralisação.

Bilhões parados

A suprema corte analisou minuciosamente as movimentações realizadas pelo atual governo em relação às duas modalidades de financiamento do Fundo Clima, que são as operações reembolsáveis, realizadas via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e as não reembolsáveis, apoiadas diretamente pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Segundo dados levados ao processo pelo Observatório do Clima (OC), a parcela não reembolsável do Fundo Clima foi sendo paulatinamente reduzida até atingir patamares historicamente mínimos na verba autorizada pela Lei Orçamentária Anual (LOA). 

Para 2022, a verba autorizada para o fundo na LOA é de R$525.980,00 na modalidade não reembolsável, o que segundo o OC seria suficiente para financiar somente um ou dois projetos. Os valores efetivamente pagos revelam uma situação ainda mais drástica, com apenas pouco mais de R$ 24 mil efetivamente desembolsados pelo fundo neste ano.

Já em relação à parcela reembolsável, os dados do OC revelam que havia, em dezembro de 2021, um montante vultoso de R$ 698 milhões disponíveis para uso pelo BNDES, porém não aplicados. 

Além disso, o OC mostrou que há cerca de R$ 444 milhões empenhados no orçamento, porém não transferidos para o BNDES, perfazendo um total de mais de R$ 1,1 bilhão em recursos sem uma destinação concreta nessa modalidade.

Por considerar que os recursos do Fundo Clima têm destinação legal específica e visam concretizar direitos fundamentais, o STF concluiu que o governo fica impossibilitado de contingenciar valores do fFundo. 

Ficou ainda registrado que o judiciário poderá escrutinizar as escolhas realizadas pelo governo quanto aos projetos a serem apoiados, para garantir que não haja desvios ou malversação dos recursos e para assegurar a maximização dos benefícios, em termos de efetiva redução das emissões e aumento da resiliência.

Como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reconheceu em seu último relatório, os litígios climáticos têm se mostrado ferramentas importantes na ambição e nos resultados da governança climática. 

O desfecho exitoso da ADPF 708 reafirma a constatação do IPCC e mostra que a litigância climática estratégica é uma avenida necessária para garantir que os países e as empresas honrem com seus compromissos climáticos.

* Caio de Souza Borges é doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da USP e mestre em direito e desenvolvimento pela FGV Direito SP. Foi pesquisador visitante da Universidade de Fudan (Xangai). Coordena o Portfólio de Direito e Clima do Instituto Clima e Sociedade (iCS)