OPINIÃO: Diversidade avança, mas com passos de formiga e sem vontade

Regra da B3 para diversidade vem tarde e deveria estimular proporção de mulheres e negros na alta liderança em vez de número absoluto, escreve Angela Donaggio

Cubos mostram figuras masculinas e apenas um deles contém uma mulher
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A B3 anunciou esta semana uma audiência pública com regras de diversidade para alta gestão das companhias listadas, no modelo “pratique ou explique”. 

Até 2026, as empresas listadas deverão eleger para o conselho de administração ou para a diretoria estatutária pelo menos uma mulher e um “membro de comunidade minorizada”, o que inclui negros, LGBTQIA+ ou pessoas com deficiência. Caso não o façam, precisarão explicar o porquê. 

A medida foi recebida por alguns com certo entusiasmo, mas para quem acompanha a agenda da diversidade e inclusão na governança há mais de uma década, é difícil comemorar. 

Primeiro, porque a proposta parece avançar pouco: em termos de transparência de dados, não vai muito além do que a CVM já solicita das empresas. Não há sentido em uma autorregulação que apenas reflita a regulação, mas sim que suba a barra para termos sempre movimentos de evolução da governança.

Segundo — e mais importante — porque o texto tem pouca ambição e permite a proliferação do “tokenismo”, ou simbolismo, em vez de fomentar uma porcentagem significativa, de 20% a 40%, de minorias.

A proposta da B3 permite a acumulação de características. Na prática, isso possibilitará que as companhias insiram apenas uma pessoa (mulher e negra) em vez de duas pessoas de grupos minorizados. 

Por que isso é importante? Porque a prática mostra que pessoas representativas de grupos minorizados só passam a ser escutadas efetivamente como pares nas empresas a partir dessa massa crítica de 20% a 40%. (Explicamos o mecanismo neste webinar.)

O tamanho dos conselhos varia muito de empresa para empresa, por isso é muito mais impactante definir um percentual. Além disso, a proposta da B3 não exige que ambos, conselho e diretoria, apresentem diversidade. Na prática, será possível que uma companhia faça o mínimo do mínimo, ou seja, eleja apenas um membro (que acumule duas características) no conselho ou na diretoria e já estará cumprindo o critério de “diversidade” na alta gestão.

Os benefícios do aumento da diversidade da liderança já estão provados. Em 2017, eu e Alexandre Di Miceli iniciamos uma pesquisa para a International Finance Corporation (IFC), braço financeiro do Banco Mundial, buscando verificar a relação entre diversidade e ESG. 

Nossos resultados, publicados dois anos depois por meio de uma Private Sector Opinion intitulada “Women in Business Leadership Boost ESG Performance” foram traduzidos para 7 idiomas e mostram que uma maior diversidade de gênero nos conselhos e diretorias está relacionada a diversos impactos positivos em ESG.

A relação positiva é ainda mais forte quando se atinge a massa crítica de cerca de 30% de mulheres. Na esfera ambiental, empresas com maior diversidade de gênero apresentam menos emissões de GEE; na esfera social, têm melhor reputação ética e social e maior aderência direitos humanos; e na governança corporativa, apresentam maior conformidade às leis e normas, melhor qualidade dos relatórios, melhor processo decisório e menores índices de fraudes corporativas. 

(Adicionalmente, analisamos esses resultados em detalhes vis a vis os princípios do Pacto Global no artigo “A importância da diversidade de gênero nos conselhos de administração”.)

Inércia

Segundo dados da própria bolsa, das 423 empresas listadas, 61% delas têm zero diretoras (brancas ou negras) e 37% delas têm zero conselheiras (brancas ou negras). 

Um breve histórico da diversidade no Brasil mostra nosso estado de inércia.

Em 2012, eu e mais três co-autores (Alexandre Di Miceli, Ligia Pinto e Luciana Ramos) concluímos uma pesquisa iniciada três anos antes na qual investigamos mais de 73 mil cargos em conselhos de administração, fiscal e diretoria num período de 15 anos, que voltava até 1997. 

Os resultados indicavam claramente uma total estagnação na participação de mulheres brancas e a inexistência de mulheres negras na alta gestão. 

No mesmo ano, fomos convidados a participar de uma audiência pública no Senado Federal sobre o Projeto de Lei 112, que tratava de políticas de cotas de gênero nos conselhos de estatais federais. 

Defendemos ações imediatas, por meio de políticas afirmativas (públicas e privadas), tais como as cotas nas companhias listadas ou de grande porte, metas em companhias fechadas e menores, com políticas internas e programas que eliminem as barreiras institucionais para ascensão de mulheres aos altos cargos de gestão 

Elaboramos ainda uma série de iniciativas alternativas de fomento à diversidade em virtude dos resultados alarmantes que encontramos (divulgadas no Global Economic Symposium, em 2012).

Em contraposição aos dados que apresentamos, as instituições de mercado presentes na audiência pública alegaram que a situação “se resolveria naturalmente”. 

Em 2019, noticiamos que diversos países avançaram, e muito, em relação à diversidade. O Japão, que era lanterninha global na corrida pela diversidade de gênero nos conselhos (2% de mulheres em 2009), ultrapassou o Brasil.

Mulheres nos conselhos das maiores companhias listadas (2009-2019)

Por aqui, como havíamos alertado em nossa pesquisa inicial há mais de uma década, apesar de algumas iniciativas privadas e voluntárias, os anos se passaram e a situação não mudou nada. Continuamos praticamente estagnados, nos 8%. De 2020 a 2022, o crescimento da diversidade de gênero e racial nas companhias também foi pífio. 

Enquanto a “estratégia” brasileira era ir empurrando com a barriga, os países que mais avançaram —  e de forma consistente — na agenda da diversidade na governança foram os que adotaram ações afirmativas.

Com data de início e de término da política, como toda ação afirmativa, a grande maioria dos países desenvolvidos adotou políticas de cotas autoaplicáveis para evitar escusas e manobras por parte das companhias.  Atualmente contam-se às dezenas os países que adotaram políticas afirmativas de cotas nos conselhos e, consequentemente, alcançaram outro patamar em termos de diversidade.

Hora da ação

A homogeneidade não foi criada pela “natureza”, mas por pessoas e estruturas de poder. E cabe a ambas mudar essa realidade.

Muitas das atividades voluntárias (de networking, cursos etc) fazem mais espuma do que geram resultados. Não que sejam irrelevantes para as pessoas que participam delas. Claro que elas podem mudar destinos profissionais.

Mas em mais de vinte países — grande parte do continente europeu, mas também alguns do continente africano —  iniciativas privadas, como inserção da diversidade no código de boas práticas de governança, networking, entre outras foram inócuas a produzir um efeito sistêmico positivo.

Na esmagadora maioria dos países que levaram a sério o debate, os resultados dessas iniciativas não foram capazes de mudar a realidade consolidada de homogeneidade. Por que, então, seria diferente aqui?

Caso a proposta da B3 vá adiante e seja aprovada da forma que está pode até ser que as companhias comecem a levar o tema mais a sério. Mas, na pior das hipóteses, continuamos na mesma: festejando caminharmos “com passos de formiga e sem vontade”, vendo o mundo avançar e ficando para trás, com a sensação de que alguém deve fazer algo a respeito, algum dia.

Temos um longo caminho de ações concretas, refletidas e genuínas pela frente. 

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Observações:

  1. Todos os dados mencionados consideram cargos titulares e estatutários. Opto por essa metodologia, para não gerar uma percepção equivocada de avanço do tema quando contabilizamos cargos suplentes e não estatutários.
  2. Utilizei no artigo os dados de diversidade de gênero e raça, pois são os mais representativos dos grupos da sociedade brasileira (respectivamente 52% e 54% da população), enquanto são os mais sub-representadas nos cargos de alta gestão. Isso não quer dizer que a presença de outros grupos minorizados (mais difíceis de se ter acesso aos dados em conselho e diretoria) não seja de absoluta importância, tais como pessoas com deficiência, LGBTQIA+, entre outras minorias.

* Angela Donaggio é fundadora da Virtuous Company, consultora e professora dos cursos para conselheiros do IBGC e da Fundação Dom Cabral em ESG, ética e diversidade.