O (seu) vinho com trabalho escravo e a responsabilidade pelos fornecedores

Caso das vinícolas Salton, Garibaldi e Aurora mostra que alegar desconhecimento é uma desculpa que não cola mais — se não aos olhos da lei, pelo menos aos dos consumidores

O (seu) vinho com trabalho escravo e a responsabilidade pelos fornecedores
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As imagens e relatos de cerca de 200 trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão na colheita da uva em Bento Gonçalves correram o Brasil neste fim de semana.   

Jornadas extenuantes de mais de 15 horas, alojamento precário e emprego de violência, com uso de máquinas de choque e spray de pimenta estavam entre os expedientes utilizados pela Fênix Serviços Administrativos, empresa que prestava serviços para  três das mais conhecidas vinícolas do país: Salton, Aurora e Garibaldi.

Trazidos da Bahia, os trabalhadores precisavam comprar alimentos a preços abusivos em lojas controladas pelos empregadores, e acabavam sempre endividados, o que os mantinham presos à condição. 

Eram ameaçados de ter de pagar R$ 1600, o valor da passagem da Bahia, se faltassem por um dia sequer no trabalho. Há relatos de um trabalhador que carregou caminhões de uva sufocando numa crise de asma. 

As vinícolas alegam que não sabiam da situação, usando uma justificativa comum e cada vez mais batida: tratava-se de uma companhia terceirizada.

A legislação trabalhista trata da chamada “responsabilidade subsidiária”, pela qual empresas que se beneficiam indiretamente dos serviços prestados podem ser acionadas caso a contratante direta não consiga arcar com as dívidas trabalhistas — e nesse caso, com as indenizações que serão devidas.

Mas a responsabilidade vai muito além do que está escrito na lei. 

Se responsabilizar pelo que acontece na cadeia de fornecimento é um imperativo cada vez maior para empresas, especialmente as de maior porte, que movimentam e se beneficiam de uma série de atores ao longo de seu processo de produção. Salton, Aurora e Garibaldi faturam juntas cerca de R$ 2 bilhões ao ano.

No core

O caso guarda semelhança com um outro de crime atroz cometido por um terceirizado a serviço de uma grande companhia: o assassinato de João Alberto Silva Freitas, em 2020, espancado e asfixiado por seguranças de uma loja do Carrefour, em Porto Alegre. 

O episódio ganhou as manchetes e provocou à época uma onda de boicotes e protestos contra a varejista, acusada de práticas racistas — João Alberto era negro. 

Além da terceirização, o racismo é outra peça em comum entre os dois episódios: a maior parte dos trabalhadores escravizados na colheita da uva era negro.

Em entrevista ao portal Sul 21, Victor Abreu, um jovem que bateu na porta das vinícolas procurando emprego em 2021, afirma que foi contratado pela Oliveira & Santana (uma das empresas do mesmo dono da Fênix) como “líder” de uma das equipes de carregadores de uva numa unidade da Aurora.

Um dos motivos para o “cargo de confiança”, alega ele, era a cor da sua pele. Ele era branco e vinha de Assis, no interior de São Paulo. Ele foi embora depois de um mês quando entendeu do que se tratava o trabalho: ser uma espécie de capitão do mato que fiscalizada se algum dos trabalhadores estava “fazendo corpo mole”. Os migrantes da Bahia não tinham a mesma opção.

A crise de imagem do Carrefour não se traduziu em perdas relevantes de receita, é verdade. 

Mas provocou uma mudança na forma como a varejista se relaciona com os terceirizados, com práticas e educação antirracista para a cadeia, além de programas para contratar mais negros para posições de liderança dentro da própria companhia. 

No caso das vinícolas, a responsabilidade é ainda mais explícita: sem uva, não há vinho. O manejo da matéria-prima, que ocorre numa região restrita e limitada, é parte central da produção. 

Omissão? 

Se as empresas sabiam da situação e faziam vista grossa, é uma questão que ainda precisa ser investigada. 

Ainda na reportagem da Sul 21, Abreu, o jovem branco contratado como “líder” na Aurora afirma que uma técnica do trabalho da vinícola costumava aparecer por lá. 

“Tinha uma técnica do trabalho que eu conversava muito com ela, porque dava pra ver que a função dela era estar disposta, mas não exatamente com ouvido aberto, não exatamente com os olhos abertos”, relata ele. 

Mas, se as empresas não sabiam, erraram por não conhecer sua cadeia de fornecedores. No mínimo, pecaram por omissão — se não necessariamente aos olhos da lei, aos dos consumidores que agora sabem que os espumantes que regam seus brindes podem ter gosto de trabalho escravo. 

O ouro ilegal que sai dos garimpos em terras indígenas vai parar em joalherias, na forma de brincos, aneis e colares. O boi que pasta em áreas desmatadas na Amazônia tem como destino algum frigorífico e, por fim, os pratos de quem come a carne. A União Europeia já tem uma lei para barrar a importação de commodities de terras desmatadas. 

Cada vez mais empresas, com cadeias longas e muito mais complexas, impõem protocolos para conseguir rastrear de onde vêm as matérias-primas da sua produção.

Se a rastreabilidade é um desafio que já começa a ser enfrentado, saber em que condições trabalham os colaboradores da empresa é, definitivamente, o mínimo.

Na próxima vez que tomar um vinho, vale refletir sobre o que está enchendo sua taça.