O ponto cego do capitalismo de stakeholder

Os defensores da sustentabilidade estão ignorando a concentração de poder político e financeiro das grandes corporações?

O ponto cego do capitalismo de stakeholder
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Uma das belezas da ideia do capitalismo de stakeholder é a simplicidade de sua expressão: levar em conta os interesses não só dos acionistas, mas de todos aqueles tocados direta ou indiretamente pelas atividades da empresa.

Essa motivação nobre, entretanto, pode esconder um problema: e se o movimento por um capitalismo sustentável estiver ignorando a crescente concentração de poder econômico e político de certas companhias?

Este é o argumento central de um paper publicado semana passada por Denise Hearn, do think tank American Economic Liberties Project, e Michelle Meagher, que estuda responsabilidade corporativa e legislação antitruste.

“Os defensores do capitalismo de stakeholder ainda não responderam uma pergunta crucial: é adequado que empresas tenham tanto poder assim?”, escrevem as autoras.

Com a influência de certas companhias cada vez mais evidente – haja vista o cerco regulatório que se fecha sobre as gigantes da tecnologia –, manter-se em silêncio pode custar legitimidade ao movimento que prega um capitalismo mais humano e sustentável.

O paradoxo do Google

O Google, que vale 1,6 trilhão na bolsa, é o líder incontestável nas buscas na internet mundo afora. A empresa ficou com 29% dos US$ 211 bilhões do mercado americano de publicidade digital, um negócio intimamente relacionado às buscas.

Essa presença dominante no negócio dos anúncios online – tanto em seus serviços próprios como nas ferramentas usadas por terceiros para obter receitas – coloca há anos a empresa na mira de reguladores americanos e europeus.

E, com lucros extraordinários, as Big Techs sufocam a inovação, comprando concorrentes potenciais antes que eles se tornem uma ameaça.

O site Killed by Google se dedica exclusivamente a listar as empresas e serviços que a companhia comprou e depois decidiu abandonar.

Apesar de tudo isso, a Alphabet, holding que controla o Google, lidera o ranking de 2022 da JUST Capital, uma entidade sem fins lucrativos que elege a empresa mais “justa” dos Estados Unidos.

O mesmo Google que paga um exército de lobistas dos dois lados do Atlântico para se defender de acusações de abuso de poder econômico é o campeão de um ranking que avalia as companhias de acordo com “as questões que importam para as pessoas”.

Esse paradoxo é mais visível no setor de tecnologia, mas as autoras apontam que, desde 1990, mais de 75% dos setores da economia americana sofreram concentração ­– de óculos a funerárias, de frigoríficos a saúde.

“O capitalismo de stakeholder entendeu que o algoritmo dos mercados de capitais gera resultados perversos. Mas os detalhes de como as empresas aumentam seu poder de mercado recebe muito menos atenção”, escrevem Hearn e Meagher.

O tamanho pode se traduzir em ganhos de escala e preços mais baixos, por um lado, mas de outro existe uma postura cada vez mais agressiva – ou talvez a palavra correta seja abusada – no que diz respeito à tributação, por exemplo.

Marc Benioff é um dos nomes associados a esse capitalismo consciente. Mas a empresa que ele fundou e comanda, a gigante do software Salesforce, tem 14 subsidiárias fiscais, criadas essencialmente para burlar o fisco.

Em 2020, ano em que obteve US$ 2,6 bilhões de lucro, a empresa não pagou nenhum imposto federal nos Estados Unidos. A Salesforce é a quarta colocada na lista da JUST Capital.

“Um movimento cuja premissa é o comportamento corporativo ético não pode articular seus objetivos de forma convincente se ignorar como as companhias operam de fato”, afirmam as autoras.

Estruturas de poder

Com o poder financeiro restrito a um grupo cada vez menor de megacorporações, a resposta não deveria depender somente de mudanças voluntárias ou obrigatórias na governança corporativa, argumentam as autoras.

Emprestando termos dos movimentos sociais, elas afirmam que é necessário examinar onde está o problema. De nada adianta falar nas “partes interessadas” se não houver mudanças nas estruturas de poder.

Em termos práticos, as autoras sugerem oito ações para acertar o rumo do capitalismo – de stakeholder ou não. São medidas que dizem respeito em particular ao mercado americano e seus mecanismos de controle, mas que certamente se aplicam a outras geografias. Alguns exemplos:

  • Apoiar investigações de fusões e aquisições anticompetitivas e eventuais medidas de remediação como a cisão de negócios;
  • Defender medidas que desacelerem a “vasta consolidação que aflige os mercados hoje em dia”, e
  • Entrar com ações na Justiça contra empresas dominantes que demonstram prejuízo claro aos stakeholders.

As autoras também fazem observações mais abrangentes, que se referem ao papel das grandes empresas na sociedade.

“[Elas] são uma criação pública e devem ser responsabilizadas publicamente. Nós, o público, temos de afirmar nossas demandas por meio das autoridades eleitas.”

O paper trata de um tema novo no mundo ESG, mas esse olhar já parece presente em algumas esferas governamentais.

Num evento recente, segundo relata o Financial Times, Lina Khan, a chefe da Federal Trade Commission (uma espécie de Cade americano), afirmou que a preocupação das autoridades de defesa da concorrência deve ir além do bem-estar do consumidor.

O foco deve ser cada vez mais nas realidades de mercado. Para enfrentar grandes interesses empresariais, os reguladores precisam estar prontos para “grandes brigas”.