O plano da Marfrig para descarbonizar os rebanhos (com base na ciência)

Metas de redução de emissões do frigorífico têm chancela internacional de prestígio, mas o processo será longo e a empresa ainda não se compromete com o net zero

O plano da Marfrig para descarbonizar os rebanhos (com base na ciência)
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Quando os especialistas reunidos pela Marfrig apresentaram sua proposta para reduzir as emissões de gases de efeito-estufa da cadeia produtiva do frigorífico, Paulo Pianez, o diretor de sustentabilidade da empresa, perguntou: “Mas só isso?”

“Me olharam como se eu fosse maluco”, diz Pianez.

Eis a sugestão que surpreendeu Pianez: reduzir em 33% a intensidade da emissões para cada animal abatido, até 2035.

Mesmo levando em conta as dificuldades particulares da pecuária, cortar um terço em 13 anos não chega a impressionar, ainda mais para um setor criticado por fazer menos do que deveria para combater a mudança climática.

Mas a equipe tinha seguido as orientações do executivo: objetivos realistas, alcançáveis e que envolvessem reduções reais, ou seja, sem o uso de compensações com créditos de carbono.

A comprovação de que o caminho seria mesmo aquele veio há cerca de um mês.

As metas da Marfrig receberam a chancela mais prestigiosa dos compromissos climáticos corporativos, a aprovação da Science-Based Targets initiative. Apenas outras sete empresas brasileiras obtiveram o carimbo da SBTi, que avalia as promessas à luz da ciência.

O selo traz duas mensagens importantes. A primeira é o reconhecimento de que a descarbonização da carne é realmente muito complicada. A segunda, mais otimista, é a sinalização de que ela é possível, mesmo que não aconteça na velocidade que muitos esperam – ou prometem.

A Marfrig vai perseguir dois grandes números. Além do corte de 33% nas emissões relacionadas ao ciclo de vida dos animais – algo que depende essencialmente de seus fornecedores, o chamado escopo 3, que engloba as emissões indiretas de um negócio –, a empresa também quer reduzir em 68% em termos absolutos as emissões de sua própria responsabilidade, os escopos 1 e 2. (Também até 2035 e, em ambos os casos, a base de comparação é 2019.)

Esses dois grandes alvos serão desdobrados em ações que vão da melhoria nas estações de tratamento de efluentes de fazendas nos Estados Unidos ao rastreamento dos rebanhos no Cerrado brasileiro.

E, é claro, muito esforço para conter a fermentação entérica, o proverbial arroto do boi.

A questão do metano

O principal desafio da pecuária é o metano produzido no aparelho digestivo dos animais e liberado na atmosfera por via oral.

Esse subproduto da ruminação é um dos gases mais problemáticos quando se fala de mudança climática: seu impacto no aumento da temperatura global é 80 vezes maior que o do CO2.

Os frigoríficos fazem apenas o “desmonte” dos animais; e reduzir a liberação de metano pelos rebanhos depende de intervenções nos animais em vida.

Só no Brasil, a Marfrig tem relacionamento ativo com 10 mil pecuaristas, que por sua vez têm seus próprios fornecedores. Essa cadeia é responsável por algo entre 95% e 97% das emissões associadas ao negócio da empresa –  e elas estão “100% fora do nosso controle”, diz Pianez.

Ele menciona dois exemplos que ilustram algumas das variáveis que interferem na produção de metano. O primeiro é o tipo e a qualidade da alimentação. “Alguns produtores cuidam da qualidade do pasto e dão suplementos para seu rebanho, outros não”, diz o executivo.

Outra diferença tem a ver com a melhoria genética. “Algumas fazendas têm animais que ficam prontos pro abate mais cedo”, afirma Pianez. Uma vida mais curta significa menos emissões.

Essas são duas das frentes que a empresa pretende atacar. “De uma maneira ou de outra, todo produtor pensa em alimentação ou genética”, diz o executivo. A ideia é que o foco seja não só na produtividade, mas também na redução da pegada de metano.

O compromisso firmado para 2035 se baseou em tecnologias com 15 anos de defasagem, diz Pianez (as metas foram definidas em 2020). Soluções em desenvolvimento hoje, como aditivos para a ração, podem ganhar escala até lá.

“E já ouvimos falar de soluções que simplesmente não existiam dois anos atrás”, afirma o executivo.

“Imagine todos os animais recebendo suplementos que reduzem 40% das emissões. Associo isso à melhoria genética, com animais que ficam prontos [para o abate] em 20 meses, não em 30”, diz ele. “Então aqueles 33% na verdade devem aumentar.”

Sem desmatamento

Por enquanto, as metas de escopo 3 da Marfrig consideram apenas reduções relacionadas aos rebanhos. Ganhos que a empresa venha a obter com o sequestro de CO2 por meio de recuperação de áreas de vegetação nativa degradadas nas fazendas ou a adoção de sistemas de produção que integrem lavoura e pecuária, promovendo a captura de carbono, não foram contabilizados.

A SBTi ainda não adotou uma metodologia que permita a inclusão dessas técnicas na conta de reduções. A expectativa é que isso ocorra em 2023, o que vai representar um “desafio maior, mas ainda mais chances de reduzir [as emissões]”, afirma Pianez.

(Essas oportunidades serão mais relevantes no Brasil, já que nos outros três países de atuação da companhia – Estados Unidos, Argentina e Uruguai – desmatamento e mudança do uso da terra não são questões relevantes.)

Como parte do compromisso de conhecer todos os seus fornecedores diretos e indiretos na Amazônia (até 2025) e no Cerrado (até 2030), a Marfrig já tem informações sobre o manejo do pasto, áreas de mata abertas, culturas plantadas e assim por diante.

Um pasto bem administrado, aponta Pianez, significa mais animais e mais produtividade, mais absorção de CO2 sem a necessidade de abrir novas áreas

O plano é criar linhas de ação como essa para cada um dos fazendeiros da cadeia. Em alguns casos, basta treinamento. Em outros, a companhia ajuda com recursos financeiros.

A previsão é que o programa Verde+, lançado em 2020, invista pelo menos R$ 500 milhões até o fim da década para ajudar os produtores de biomas ameaçados.

“Também queremos desenvolver instrumentos junto ao mercado bancário para que o produtor possa financiar essa nova maneira de produzir, porque daqui a pouco essa será uma condição sine qua non”, diz Pianez. “Ninguém vai poder fugir disso.”

Dentro de casa

Diante da enormidade da tarefa que a companhia terá de enfrentar ao lado dos fornecedores, o que resta fazer em casa parece trivial – pelo menos na escala, já que somente cerca de 3% das emissões da Marfrig acontecem dos portões para dentro.

Os dois grandes pontos de ataque são a compra de energia renovável (o chamado escopo 2) e o tratamento dos efluentes.

A eletricidade é o problema de solução mais simples, pois em geral basta uma troca de fornecedores. Com relação aos rejeitos, a situação muda de figura – por causa do metano, sempre ele.

Essencialmente, a Marfrig vai refazer toda a sua infraestrutura de tratamento de água contaminada. Nos últimos três anos, a empresa investiu R$ 160 milhões nesse projeto.

Uma das maiores oportunidades de redução de emissões está na captura do metano gerado nas lagoas por que passa a água durante o tratamento. “Esta é uma típica ação concreta do escopo 1”, diz Pianez.

Sem um zero no horizonte

“Com tudo isso, mais compensações, vou ter uma pecuária que reduz substancialmente as emissões”, diz Pianez. “Diria que não é impossível falar de uma pecuária neutra ou muito próxima da neutralização.”

Mesmo com todas essas iniciativas delineadas e com um carimbo da SBTi, a empresa ainda não está pronta para indicar uma data para a neutralidade de emissões.

“Falar em meta net zero fazendo compensações fica fácil. Ou melhor, ficava, porque já se sabe que isso é conversa para boi dormir, literalmente.”