O dilema cripto dos créditos de CO2

Os tokens chegaram com a promessa de trazer mais eficiência ao mercado voluntário de carbono. Eles estão cumprindo a função?

O dilema cripto dos créditos de CO2
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Com o aumento dos compromissos de net zero por parte das empresas, o mercado voluntário de créditos de carbono explodiu nos últimos anos – o que vem deixando claras também suas ineficiências. 

Como os contratos de compra e venda de créditos são bilaterais, há pouca visibilidade de preço, tanto do lado dos compradores quanto dos vendedores, sobram dúvidas quanto à qualidade técnica de alguns projetos, e há temores de dupla contagem.

Todo problema é uma oportunidade. E, na era cripto, o blockchain apareceu com uma solução quase óbvia, o que trouxe uma nova tendência para esse mercado: a tokenização. 

De tecnolibertários e startups até grandes bancos, são várias as iniciativas para tentar colocar os créditos ‘on-chain’, permitindo um registro público das transações.

(Tecla SAP: um token é a representação digital de um ativo no blockchain. Blockchain é uma rede descentralizada digital que garante o registro e a rastreabilidade dos ativos.)

Em teoria, a tecnologia por trás das criptomoedas pode trazer mais liquidez, eficiência e segurança para os mercados de carbono. 

Outra vantagem é que ela permite que os créditos sejam divididos em frações mínimas, dando a chance para que pessoas físicas também possam compensar a pegada de carbono de atividades do dia a dia. 

Mas, se ninguém discorda do potencial desses instrumentos para alavancar as finanças climáticas, na prática, chegar a um mecanismo com o qual todas as partes interessadas estejam minimamente satisfeitas ainda parece um objetivo distante – e com muitos percalços ao longo do caminho.

Uma controvérsia recente em relação a como transformar esses créditos em tokens é a ponta do iceberg desse debate. 

Como tokenizar?

No começo de maio, a Verra, entidade que certifica e faz a custódia da maioria dos créditos transacionados no mercado voluntário no mundo, soltou um comunicado: “A Verra se manifesta sobre instrumentos cripto e tokens.”

Até segunda ordem, empresas como a brasileira Moss e a alemã Toucan, entre dezenas de outras, estão proibidas de comprar novos créditos da Verra para transformá-los nos tais “instrumentos cripto”. (Nada muda para o estoque que já foi tokenizado.)

A decisão da Verra se baseou num detalhe técnico.

Essas empresas compravam os créditos e os “aposentavam” para transformá-los em ativos digitais, divisíveis em frações e negociáveis em bolsas online junto com outras criptomoedas. 

O problema é a tal da aposentadoria. 

Hoje, os créditos registrados na Verra podem trocar de mãos sem que necessariamente sejam usados para compensação de emissões. 

Um investidor pode comprá-los pensando na valorização ou uma empresa pode querer fazer um estoque de créditos agora para compensar emissões futuras. Nesse caso, os créditos só mudam de conta no registro da Verra. 

Quando chega ao seu destino final, ou seja, ele realmente é utilizado para compensar as emissões, ele é aposentado e sai de circulação. No jargão do setor, seu “benefício final”, que é reduzir as emissões de gases de efeito estufa, só pode ser consumido uma vez. 

Empresas como a Moss e a Toucan encontraram na aposentadoria uma forma para conseguir colocar os créditos no blockchain. É uma maneira de garantir que não haja dupla contagem, ou seja, que os créditos não sejam vendidos novamente na Verra. 

A Moss tem mecanismos dentro do seu sistema para tirar o crédito de circulação quando ele é utilizado. O cliente pode optar por ‘queimá-lo’. 

Numa entrevista via vídeo com o Reset, o CEO da startup, Luis Adaime, demonstrou a compra de uma pequena fração de um token para compensar um voo entre São Paulo e Rio de Janeiro num hotsite disponível no site da empresa aérea.

Minutos depois, foi possível localizar a transação no blockchain e confirmar que aquele pedaço de crédito tinha saído de circulação. 

O objetivo de evitar a dupla contagem é válido, mas, na prática, com o uso da aposentadoria para tokenização, a Verra passou a perder a visibilidade sobre quando os créditos efetivamente foram usados para compensação – e estão, portanto, de fato contribuindo para a redução de emissões –  e quando são apenas alvo de especulação.

Em busca da solução

Se os sistemas da Verra ou dos outros “cartórios” de créditos fossem mais eficientes, afirma Adaime, não seria necessário criar o improviso que agora está suspenso.

A própria Verra já deixou claro que não vê o blockchain e a tokenização como um problema em si, mas reconheceu que precisa de sistemas melhores para que isso ocorra sem atritos.

A plataforma está trabalhando num novo mecanismo que crie uma nova categoria, permitindo a ‘imobilização’ dos créditos colocados no blockchain. Isso impediria eventuais vendas duplicadas e garantiria a transparência para o sistema. 

A Ambify, empresa do grupo Ambipar lançada no final do ano passado também para tokenizar créditos, teve de recorrer a uma outra gambiarra técnica para seguir operando. Como a solução da companhia não envolve a aposentadoria prévia dos créditos, a Ambify pode continuar transformando créditos da Verra em tokens.

Mas João Valente, diretor de ativos digitais da Ambipar, concorda com a avaliação da Adaime: “Os sistemas da Verra são arcaicos”. 

Para a Verra, é tudo uma questão de demanda. “Não havia demanda para derivativos no mercado voluntário, então não existia a infraestrutura. Agora que a demanda está aí, ela será providenciada”, afirmou ao Reset Steve Zwick, gerente-sênior de relações com a imprensa da entidade.

Compensação ou especulação?

Hoje, os preços dos tokens baseados em créditos de carbono e negociados em bolsas cripto, como o MCO2, da Moss, e o BCT, da Toucan, refletem pouco a dinâmica do mercado de compra e venda de créditos no mercado principal, de transações entre empresas. 

Enquanto, segundo traders e desenvolvedores, um crédito de desmatamento evitado na Amazônia está sendo negociado a cerca de US$ 15, o MCO2 vale hoje cerca de US$ 4,42. 

É muito menos que a máxima de US$ 20,56 do começo de 2021 – refletindo, em grande parte, o derretimento recente de tudo que tem a ver com o mundo cripto. O BCT, da Toucan, está cotado a US$ 1,88. 

Em toda nova tecnologia e novo mercado em formação, é natural que haja uma curva de aprendizagem e muita volatilidade no meio do caminho — e a especulação é uma parte importante para a descoberta de preços.

Mas se, por um lado, os tokens negociados em bolsas cripto tem o benefício de democratizar a participação num mercado nascente, boa parte desse descasamento de preços tem a ver com o fato de que eles abriram espaço para especulação de traders que não necessariamente entendem de créditos de CO2. 

Créditos de carbono já são instrumentos complexos: ativos que representam que a emissão de uma tonelada de algo que não se vê (os gases de efeito estufa) foi evitada. Junte-se a isso a camada de complexidade das criptomoedas e talvez a melhor representação seja aquele emoji com o cérebro em explosão. 

Nos fóruns de discussão sobre carbono, não é raro encontrar pessoas físicas interessadas em investir no mercado que façam alusão aos preços do carbono praticado na Europa, que é um mercado regulado fechado, e onde os contratos futuros já chegam a mais de 80 euros. O problema é que não há comunicação direta entre o mercado voluntário e o sistema de comércio de emissões europeu.

Nem todo CO2 é igual

Outro ponto importante é que a negociação do CO2 do mercado voluntário com um valor único, como se fosse uma commodity, parte da premissa de que toda tonelada de CO2 evitada é igual. 

Mas, na prática, não é assim. As metodologias de verificação para geração de crédito de carbono vêm evoluindo ao longo do tempo e hoje há uma série de créditos no mercado, especialmente os mais velhos, considerados de menor qualidade. 

Na dinâmica das empresas que olham com cuidado para o assunto, há uma preocupação sobre a origem do crédito de carbono e as externalidades geradas por ele.

“Cabe aos compradores identificar os melhores projetos e saber o que estão comprando”, afirma Bruno Brazil, fundador e CEO da desenvolvedora de projetos BR Carbon. “Na mesa dos adultos, eles não querem saber só do carbono. Querem saber da qualidade desse carbono e também como o dinheiro vai transformar a vida das pessoas.” 

Os preços variam muito, com os compradores topando pagar mais por projetos que comprovam benefícios ambientais ou sociais, ou por créditos de projetos que sequestram carbono efetivamente em vez de apenas evitar sua emissão.

O retorno dos créditos zumbis

A leva de criptotraders querendo especular com créditos de carbono também trouxe consequências inesperadas, como o ressurgimento de créditos antigos, de baixa qualidade e que não encontravam mais compradores – os chamados ‘créditos zumbis’. 

Entre especialistas do mercado, há uma grande preocupação com a efetiva contribuição climática de créditos chamados ‘vintages antigos’, gerados há muitos anos, quando alguns protocolos ainda não estavam consolidados.

Um dos principais argumentos por trás de grupos de criptoativismo ambiental é que seus sistemas ajudariam a “varrer o chão”. 

É a tese por trás da Klima DAO, por exemplo, que converte tokens de crédito de carbono em uma nova moeda, chamada Klima. A tese é que, ao comprar os créditos mais baratos do mercado voluntário, eles ajudariam a puxar o preço do CO2 para cima, o que encorajaria projetos mais robustos em termos de redução de emissões. 

O tiro, no entanto, saiu pela culatra. A questão é que, na prática, as empresas que querem neutralizar suas emissões já evitavam parte desses créditos de má qualidade e a demanda dos criptotraders fez com que eles voltassem à vida. 

Em abril, a ONG CarbonPlan analisou os créditos tokenizados pela Toucan, dona do protocolo para gerar a criptomoeda de carbono mais ativa, a BCT. 

E descobriu que 28% dos créditos transformados por meio da sua plataforma eram de projetos que não tinham aposentado créditos nos últimos dois anos ou então  só tinham aposentado créditos via Toucan. 

Esse movimento foi mais acentuado no fim do ano passado e começo deste ano, quando arbitragens entre criptomoedas de carbono geraram distorções que permitiram um lucro rápido. Por um breve período de tempo, no fim de 2021, foi possível comprar um crédito de menos de US$ 2 e negociá-lo a mais de US$ 3000 na plataforma KlimaDAO.  (O mercado de Klimas implodiu e hoje ele é negociado a cerca de US$ 3.)

Os MCO2 da Moss podem ser trocados por Klimas. Mas, no caso da empresa brasileira, o CEO Luis Adaime afirma que há padrões de qualidade, que incluem não negociar ativos com vintages anteriores a 2013, e auditorias em todos os projetos de créditos que são vendidos pela plataforma. 

Incumbentes x Desafiantes

A disputa entre os desafiantes do mundo cripto e os incumbentes reproduz, de certa forma, uma briga maior entre o sistema financeiro tradicional e os defensores de um futuro de autoridade descentralizada e difusa.

Em entrevista à Time, a Verra já indicou que tende a preferir trabalhar com o Carbonplace – um projeto de um consórcio de bancos que inclui Itaú, BNP Paribas, UBS e Standard Chartered.

À revista, Robin Rix, responsável pela área jurídica da Verra, afirmou que um dos motivos para escolher uma instituição controlada por bancos é evitar que esses criptoativos do clima sejam parte do “vale tudo” que se viu nos mercados até aqui.

Para ele, nada impede que tokens de projetos ambientais sejam usados para lavar dinheiro, por exemplo. “Os bancos têm processos sofisticados para conhecer os clientes”, afirmou.

Manter tudo dentro do “establishment” seria uma maneira de garantir a sobrevivência dessas entidades centralizadoras? Zwick, da Verra, afirmou ao Reset que a desintermediação proposta pelos defensores do blockchain não representa uma ameaça existencial para as entidades.

“É um desafio no sentido de que temos de fazer as coisas direito, mas o blockchain é só uma maneira de negociar créditos depois da sua criação”, afirma ele. “O trabalho pesado é desenvolver metodologias e administrar o processo de verificação e validação. Não existe ameaça existencial para a Verra.”