O chamado antiviolência de Jayme Garfinkel: "Empresas precisam dar emprego a egressos do sistema prisional"

O chamado antiviolência de Jayme Garfinkel: "Empresas precisam dar emprego a egressos do sistema prisional"
A A
A A

Desde que deixou a presidência do conselho da Porto Seguro, em maio de 2019, o empresário Jayme Brasil Garfinkel dedica boa parte do seu tempo a tentar reduzir o elevadíssimo índice de reincidência criminal no Brasil, que está na casa dos 70%.

Convencido de que o remédio para a redução da violência no país não está na construção de mais presídios, mas na reabilitação das pessoas que estão no sistema prisional, já havia fundado em 2015 o Instituto Ação pela Paz.  

Agora, em nome da causa, foi para a linha de frente.

Deixou no passado o perfil mais discreto que adotava enquanto comandou o grupo segurador fundado por seu pai e passou a dar palestras, participar de eventos online e até virou âncora de um podcast. No programa ‘Olhar mais de perto’, conduz entrevistas para discutir os caminhos para se reduzir a reincidência criminal no Brasil.

Tudo para tentar sensibilizar outros empresários e executivos que têm nas mãos o que ele acredita ser a chave para o problema.

“É socialmente fundamental recuperar as pessoas presas e necessário criar uma dinâmica para arranjar emprego para os egressos”, diz Garfinkel.

A aposta na reabilitação é baseada em números.

A população carcerária do país está em torno de 750 mil pessoas, é a quarta maior do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Enquanto os Estados Unidos caminham no sentido da redução, no Brasil o número de presos cresce a uma taxa de 7% ao ano. A elevadíssima reincidência, de 75%, explica grande parte da escalada.

Outro dado importante: a maioria da população carcerária tem menos de 42 anos. “São pessoas no auge da capacidade de trabalho.”

Rompendo o tabu

Ele sabe que a tarefa envolve a quebra de um enorme tabu.

“Costumo ouvir: ‘Falta emprego para gente honesta e você quer pedir emprego para bandido?’. O grande desafio é conseguir abstrair o fato de que a pessoa cometeu um crime. Estamos falando de ondas muito novas, de uma conscientização de que precisamos ter um mundo melhor”, diz.

Diretora executiva do Ação pela Paz, Solange Senese tem uma visão pragmática do assunto. “Ninguém é obrigado a dar emprego a alguém que veio do crime e não queremos que as empresas empreguem qualquer pessoa. Mas sim aquelas que já saíram do muro, tomaram a decisão de não voltar e passaram por um processo de recrutamento e formação psicossocial.”

Dois programas apoiados técnica e financeiramente pelo instituto têm sido cruciais para fazer a reinserção acontecer.

Responsa e Recomeçar são projetos criados por egressos do sistema para apoiar, formar e encaminhar ex-detentos para o mercado de trabalho. O Recomeçar nasceu dentro da Gerando Falcões e hoje se tornou um projeto à parte, acelerado pela ONG. Nos dois casos, empresas interessadas podem acessar uma lista de selecionados.

“É diferente fazer esse apelo às empresas sabendo que existem pessoas preparadas para a reinserção”, diz Senese.

Ainda assim, não é fácil. Garfinkel sentiu a dificuldade na própria Porto Seguro, onde teve que fazer um trabalho de convencimento para chegar à contratação de quatro egressos.

Ao longo de 2020, no entanto, os quatro deixaram a empresa por variados motivos — um deles por problemas de comportamento no trabalho. Agora, com uma lista de dez pessoas indicadas pela Recomeçar em mãos, a companhia se prepara para dar novas oportunidades.

‘Gente como a gente’

A decisão do empresário de criar o Ação pela Paz e dedicar seu tempo à recuperação de presos veio de um incômodo que carregou por muitos anos.

Sempre que lia notícias nos jornais sobre a realidade prisional no país, se lembrava do inconformismo do pai, de origem judaica, com o suposto desinteresse das pessoas sobre o que se passava dentro dos campos de concentração durante o Holocausto. “Eu sentia que também não estava fazendo nada a respeito.”

Seu primeiro impulso foi pensar em tornar mais humanas as condições dos presídios. Ele só foi apresentado ao conceito da recuperação dos presos em 2014, quando conheceu Solange Senese, numa palestra que assistia sobre o sistema prisional.

Na ocasião, a hoje diretora do instituto estava há 13 anos na Funap, a fundação ligada à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo que desenvolve programas de ressocialização dos presos.

Garfinkel a convenceu a trabalhar com ele e os dois passaram a mapear juntos os problemas e possíveis soluções.

Até então, apesar do incômodo, o empresário nunca havia pisado num presídio e foi convencido por Senese a fazê-lo. Numa palestra recente, Garfinkel descreveu a sensação de sentir que “é gente como a gente que está lá dentro.”

Medir e replicar

Conseguir inserir os egressos no mercado de trabalho é a ponta final de todo o trabalho desenvolvido pelo Ação pela Paz.

O instituto atua dando recursos financeiros e apoio técnico ao poder público para desenvolver projetos dentro dos presídios para reduzir a reincidência.

A maior parte do trabalho acontece no Estado de São Paulo, que tem a maior população carcerária do país, com 230 mil presos. O instituto tem parcerias com os poderes executivo e judiciário estaduais na implementação do Sistema Estadual de Métodos para Execução Penal e Adaptação Social do Recuperando, o Semear.

“Somos viabilizadores de projetos”, diz Senese. “Um dos nossos princípios é reconhecer o que o setor público faz e apoiar as iniciativas que podem recuperar mais. Perguntar o que já fazem, o que gostariam de fazer e o que precisam para isso.”

Só são aprovadas ideias que possam ser replicáveis e que tenham potencial de se tornar políticas públicas.

Existem programas de qualificação profissional, claro, mas o trabalho vai além e avança para valorização de vínculos familiares e até projetos psicossociais, que ajudam as pessoas a elaborar os motivos que as levaram à prisão e o que virá depois.

Desde que foi criado, em 2015, o instituto já atuou em 153 unidades prisionais e atendeu 17,9 mil pessoas em seus projetos, entre pessoas privadas de liberdade e egressos do sistema. As ações vão ganhando tração e só em 2020 foram 11,5 mil pessoas, superando os atendimentos acumulados nos quatro anos anteriores.

A ideia é abranger todo o país e, além de São Paulo, já há atuação em Alagoas, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte.

Depois de cinco anos de existência, cada vez mais o instituto quer saber qual a combinação de políticas de assistência que podem impactar mais na redução da reincidência criminal.

“Criamos um sistema eletrônico que identifica cada um dos participantes de cada um dos projetos, de aula de xadrez à terapia de grupo. Os dados estão sendo captados e daqui a alguns anos teremos uma avaliação estatística de quais cursos ou atividades são mais eficientes para diminuir a reincidência das pessoas”, diz Garfinkel.

Embora ainda não conclusivos, números preliminares colhidos no Estado de São Paulo são bastante animadores a apontam para queda dramática da reincidência criminal. 

De 2015 a 2018, o Semear monitorou 2,6 mil presos que foram beneficiados com algum tipo de assistência. Dos 1,4 mil que deixaram os presídios no período, apenas 6% reingressaram no sistema.