Nas medidas antirracistas do Carrefour, desafio é monitorar fornecedores

Nas medidas antirracistas do Carrefour, desafio é monitorar fornecedores
A A
A A

Depois da crise desencadeada pela morte de um cliente negro por seguranças de um hipermercado no fim do ano passado, o Carrefour assumiu o erro, chamou consultores de peso e anunciou uma série de medidas para combater o racismo em suas operações.

Mas, embora as ações pareçam apontar numa direção acertada, ainda falta a rede mostrar provar que será capaz de tirá-las do papel. 

Uma das medidas principais da nova política foi a inclusão de uma cláusula antirracista, desde abril, em todos os contratos firmados com os seus 16 mil fornecedores.

A cláusula prevê que a empresa contratada se comprometa a “não praticar qualquer ato de discriminação”, trata da promoção da diversidade, da inclusão social e da adoção de mecanismos de educação e treinamentos em direitos humanos.  

O problema é que a varejista não criou meios para monitorar se as normas estão sendo cumpridas em toda a cadeia — e parece contar com a boa fé dos fornecedores e com os canais de denúncia existentes.

“Os fornecedores têm o compromisso de agir de acordo com a legislação brasileira, nós não temos como monitorar se de fato eles o fazem, mas se vier a público que deixaram de fazer, a gente vai saber e o contrato será rompido”, diz João Senise, vice-presidente de recursos humanos do Grupo Carrefour Brasil.

O termo vigora em contratos com prestadores de serviços, como limpeza e manutenção, e também com fornecedores de produtos vendidos na rede, inclusive multinacionais.

“Em alguns casos, grandes fornecedores têm os próprios mecanismos de monitoramento interno e alguns se disponibilizaram a fornecer essas informações; nos outros, o compromisso assumido terá que ser cumprido. Existe também o impacto de que, se eu sou um fornecedor do Carrefour e assino essa cláusula, isso vai ser comunicado dentro da minha empresa e gera uma transformação”, diz o executivo.

No front educativo, a rede lançou uma cartilha revisada sobre diversidade para os fornecedores, explicando conceitos e mostrando a importância de contratar e respeitar funcionários negros, mulheres, LGBTs e pessoas com deficiência.

Pressão de fora

A morte de João Alberto Siveira Freitas, 40, após ser agredido por um segurança terceirizado na rede em novembro do ano passado, causou um estrago na imagem do Carrefour Brasil. 

À época, a empresa perdeu valor de mercado na B3, levou chamado público do CEO global, Alexandre Bompard, e foi notícia no mundo todo com os protestos de grupos antirracistas realizados em frente a unidades no Brasil.

O trágico episódio botou pressão para que a empresa apresentasse publicamente uma resposta, o que incluiu um documento com oito compromissos públicos e 72 ações.

Entre essas ações, figura a internalização das equipes de segurança das suas unidades, o que significou o rompimento do contrato com a empresa que realizava o serviço e a contratação de 514 novos agentes de fiscalização e 416 fiscais de piso.

O projeto começou em Porto Alegre, onde a tragédia aconteceu, chegou a unidades de São Paulo e deve se estender a 100% dos hipermercados do país neste ano — mas deixa de fora as pequenas unidades.  

A companhia diz ter feito ainda uma revisão dos protocolos de abordagem pelos seguranças, adotado câmeras corporais e, até outubro deste ano, pretende capacitar toda a equipe em temas de direitos humanos e diversidade.

Em suas metas, também definiu que a contratação de seguranças deve seguir a representatividade da população brasileira, com 50% de mulheres e negros.

Mea culpa

O programa de posicionamento antirracista do Carrefour teve um investimento de R$ 40 milhões, de um fundo criado para ações de combate ao racismo dentro e fora da companhia, além do remanejamento de orçamento já previsto para ações de seleção e treinamento.

Só na internalização de agentes de fiscalização e na compra de câmeras corporais, que ajudam a monitorar o trabalho desses profissionais, o grupo aplicou aproximadamente R$ 6,5 milhões.

Mas, para tentar resgatar sua imagem, o Carrefour não investiu só dinheiro. Uma das principais apostas do grupo foi a criação de um comitê externo de diversidade e inclusão, que acompanha e propõe ações da empresa.

A tônica na formação do comitê foi incluir nomes de pessoas com atuação relevante para a cultura antirracista. Nele estão, por exemplo, o advogado e filósofo Silvio de Almeida, autor do livro “Racismo Estrutural”; Adriana Barbosa, empresária e fundadora da PretaHub e da Feira Preta; Celso Athayde, fundador da CUFA (Central Única das Favelas) e CEO do Favela Holding; e Rachel Maia, fundadora e CEO da RMConsulting, consultoria especializada em formação de lideranças e no “S” das políticas de ESG.

“A tragédia de novembro foi um alerta de que ainda precisamos avançar muito. Tivemos que reconhecer com humildade que havia uma falha, que era preciso prestar mais atenção não só nas nossas práticas, mas procurar ouvir mais vozes externas”, diz João Senise.

Gap de diversidade

Ampliar a diversidade do quadro de funcionários, em especial dos cargos de liderança, também é algo que a rede colocou na agenda.

Hoje o Carrefour tem 64% de negros entre os seus 95 mil funcionários no país e 49% de mulheres. Mas, quando se sobe na hierarquia, os números caem para 54% de negros e 37% de mulheres em cargos de posições de liderança.

Os números são puxados para cima pelos funcionários das lojas e centros de distribuição, com grande número de postos que exigem menor grau de escolaridade e qualificação. Segundo Senise, quando se trata de postos de liderança, a diversidade racial e de gênero é maior, de fato, nos cargos de diretoria das unidades operacionais, algo que não se repete nas unidades não-operacionais e na liderança executiva, onde são tomadas as decisões estratégicas.

“É um fato que a maior parte da nossa população é formada por pessoas negras, mas, à medida que a gente vai passando para os cargos mais sêniores, isso não se reflete”, diz Senise.

Para tentar resolver os gaps, a empresa lançou um programa de estágio com enfoque em diversidade com 30 vagas, que teve edital público e mais de 3 mil inscritos. 

Em agosto começa a seleção do programa de trainee exclusivo para jovens negros — a exemplo do que fez Magazine Luiza no ano passado —, mas ainda não há previsão de quantas vagas serão oferecidas. 

Ao mesmo tempo, o Carrefour diz ter selecionado 100 funcionários negros para um programa de aceleração de carreiras, com apoio a formação e mentorias especializadas. Mas a rede não fixou metas de diversidade para seus cargos da alta liderança.

“Nós não temos uma meta definida de percentual de pessoas negras nas posições de liderança. O processo para que esses profissionais cheguem aos cargos mais sênior da organização vai acontecer, mas é lento, por isso estamos investindo no programa de aceleração”, diz Senise.

LEIA MAIS

A barbárie no Carrefour e a responsabilidade das empresas e dos investidores. O ESG acabou?