Na transição energética à brasileira, Toyota aposta nos híbridos flex

O CEO Rafael Chang fala sobre o futuro da mobilidade, o papel do etanol e as dificuldades da falta de clareza do país na transição energética

Na transição energética à brasileira, Toyota aposta nos híbridos flex
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A Toyota foi pioneira da tecnologia de carros híbridos, com o lançamento do Prius, o primeiro a associar motores elétricos e a combustão, lá nos idos de 1997 — quando um jovem Elon Musk ainda nem sonhava com a Tesla. 

Quase 25 anos depois, com a eletrificação se tornando um imperativo para conter os efeitos do aquecimento global, a montadora japonesa aposta que a tecnologia híbrida que a consagrou ainda tem seu lugar. 

“Vai acontecer uma combinação de tecnologias. Não vai ser A, B ou C. Vai ser A, B e C”, afirma o presidente da Toyota no Brasil, Rafael Chang, em entrevista ao Reset. “Vai depender muito de cada país, de cada região, dependendo da infraestrutura, matriz energética, política federal, estadual…”

No Brasil, diante da falta de uma postura clara do governo sobre uma estratégia para mobilidade de baixo carbono, a principal aposta é nos híbridos flex, que podem ser abastecidos com etanol. 

A Toyota foi a primeira montadora a lançar um veículo com a tecnologia, em 2019, disponível para o Corolla Sedan. Apesar do preço mais salgado que o equivalente à combustão, a aceitação surpreendeu e hoje o modelo já responde por cerca de 30% das vendas, diz Chang. 

“No início, nossa previsão era de 15% a 20%, a receptividade foi muito boa e tivemos que adaptar esse mix”, afirma. Em março deste ano, foi a vez de lançar o SUV Corolla Cross com a mesma motorização. 

Segundo cálculos da União da Indústria de Cana de Açúcar (Unica), o Corolla Híbrido Flex emite quase 80% menos que um carro abastecido exclusivamente com gasolina e cerca de 20% menos que a versão que usa apenas etanol. (Os números consideram o ciclo completo do etanol, do poço à roda, que inclui o plantio, processamento, transporte, distribuição e uso nos carros.)

A ideia é lançar mais modelos com a tecnologia — até para cumprir a meta estabelecida pela matriz japonesa de ter ao menos um modelo eletrificado (seja híbrido ou EV completo) para cada veículo até 2030. 

Em conversa com o Reset, Chang falou sobre o futuro da mobilidade, o papel do etanol e as dificuldades diante da falta de clareza e previsibilidade sobre a estratégia do país para a transição energética. 

A seguir, os principais trechos da conversa.

A indústria automotiva no Brasil passa por inúmeros desafios, mas talvez o mais estrutural no médio prazo seja o de como se posicionar num momento em que o mundo todo caminha para a eletrificação dos veículos. Como a Toyota está vendo esse processo no Brasil? 

Não é uma questão de médio, de longo prazo, é uma questão que já está dada. E o modo como estamos lidando com isso está na questão dos carros híbridos flex.

O processo de eletrificação depende de muitas variáveis. Se fala muito de eletrificação, nos carros totalmente elétricos. Mas eles são uma das soluções e para eles você precisa de infraestrutura [de carregamento]. Olhando o Brasil, será que o país está no momento para investir nessa infraestrutura? Acho que não, o país parece ter outras prioridades para investir. Os carros elétricos vão chegar? Sim. Mas um pouquinho mais para a frente. 

Dentro desse processo de eletrificação ou descarbonização da indústria automotiva, a primeira solução são os carros híbridos, que não precisam dessa infraestrutura, porque a energia se auto gera dentro do carro, do sistema elétrico. E utilizando o etanol, que é um combustível que está aqui dentro do Brasil, você cria uma solução que é muito limpa.

Dá pra dizer como foi a recepção desse modelo flex? Melhor ou pior do que vocês esperavam? 

Muito boa. Da linha Corolla, o que sai de híbrido flex está entre 30% e 35%. No início, nossa previsão era de 15% a 20%, a receptividade foi muito boa e tivemos que adaptar esse mix. Mas vamos lembrar que nós fizemos esse trabalho de introdução da tecnologia não com o Corolla, mas trouxemos o primeiro híbrido do mundo, que foi o Prius [com motor a combustão abastecido com gasolina]. Para começar a evolução do conceito da tecnologia, o Prius abriu esse caminho. Depois todo nosso portfólio de Lexus, que é nossa plataforma de luxo, é híbrida. Mas obviamente, o volume da nossa produção nacional de Corolla e Corolla Cross é muito maior. 

Houve declarações recentes da Volkswagen de que eles pretendem fazer um centro de pesquisa para carros híbridos flex aqui no Brasil. Vocês já têm dois modelos que rodam com essa tecnologia. Tem muito desenvolvimento de engenharia a ser feito para escalar essa tecnologia? Ou a questão é mais de desenvolver a demanda? 

As duas coisas. Trabalhamos muito para desenvolver essa tecnologia porque vai além de só um ajuste no sistema. Tem que ver a qualidade do combustível aqui, a parte técnica. Nossa engenharia [brasileira]  trabalhou muito com a engenharia da matriz no Japão. 

Nós já temos esses dois produtos e daqui pra frente devemos produzir mais, porque outro compromisso nosso é que, até 2030, todo nosso portfólio vai ter pelo menos uma versão eletrificada. Eletrificação não significa só carros elétricos: passa por híbridos, híbridos plug-in também [que têm o motor um combustão e mas também podem ser abastecidos na tomada]. 

Vocês acham que o híbrido flex pode ser uma alternativa de transição até chegarmos nos elétricos? Ou as tecnologias vão conviver? 

Vai ser uma transição, mas acho que por enquanto é a solução aqui. E vai acontecer uma combinação de tecnologias. Não vai ser A, B ou C. Acho que vai ser A, B e C. Pode ser que carros elétricos estejam focados em áreas urbanas, por exemplo, e você não precise desenvolver infraestrutura em todo o país. Para outros lugares, o híbrido flex pode ser a solução. Hoje, a solução que a gente acha mais prática e sustentável são os híbridos flex.

A Toyota é pioneira na tecnologia de híbridos, com o Prius, há mais de 20 anos, mas tem menos tradição em elétricos. Como está a oferta de vocês para modelos totalmente elétricos globalmente? 

Temos modelos a nível global de EVs, sim. E vamos lembrar que entre o híbrido, seja flex ou normal, e o carro totalmente elétrico, também tem o plug-in hybrid, que é a combinação de carro híbrido também com tomada. Considerando todas as tecnologias de eletrificação, hoje são 55 modelos disponíveis no mundo. 

Você pode imaginar esse processo de evolução que deveria ser o lógico, né? Você começa sem infraestrutura, só com o carro híbrido. A infraestrutura vai se desenvolvendo, e o plug-in hybrid pode ser uma solução. Depois, quando você já tem uma infraestrutura toda desenvolvida, como já falamos, áreas urbanas, muito metropolitanas, pode ser um EV. Para outras áreas, pode ser um híbrido plug-in — e até hidrogênio, que ainda precisa de muito desenvolvimento. Essa seria mais ou menos a sequência, o processo de introdução das tecnologias. Mas vai depender muito de cada país, de cada região, dependendo da infraestrutura, matriz energética, política, federal, estadual… 

No Brasil, temos o etanol que é um biocombustível disponível e já tem a rede de abastecimento. Por outro lado, é uma solução eminentemente doméstica. Como fica isso para a competitividade da indústria aqui, que depende de alguma forma das exportações? Nosso parque produtivo não tende a ficar isolado?

Esse balanço é importante para nós, porque os investimentos têm que ter retorno. A competitividade vai nos permitir exportar mais, que é um dos jeitos para preencher a capacidade ociosa que nós temos e equilibrar a questão cambial. 

É verdade que o etanol ainda é uma solução brasileira, mas é verdade que a Índia está trabalhando nesse sentido e tem outros países na Ásia que estão trabalhando também. Se encontrarmos essa expansão na demanda, obviamente o retorno para o desenvolvimento das tecnologias vai ser muito melhor. Nesse caminho de competitividade, a exportação é importante. 

Tem iniciativa em curso para desenvolver novos mercados para os híbridos flex?

A Índia está se movimentando, e somos parceiros da Unica [associação que reúne os produtores de cana de açúcar]. Estamos trabalhando nesse sentido. Você mesma colocou que a Volks está pensando em fazer um centro de desenvolvimento e pesquisa e acho que isso vai ajudar a indústria em geral. O objetivo da descarbonização vai além de uma só empresa, temos que ter um olhar mais amplo. Colaboração e parceria são palavras importantes. 

Tem montadoras fazendo pesquisas sobre células combustíveis movidas pelo etanol, que seria usado em sistemas elétricos. É uma coisa que vocês veem potencial para escalar? 

Também vemos potencial, mas ainda não estamos entrando nesse território. Estamos muito focados no assunto de híbridos flex. Mas obviamente temos nossos estudos e nossos planos. 

A Toyota vem defendendo a necessidade de ter algum estímulo à transição de baixo carbono dentro da reforma tributária. O que seria um incentivo que poderia favorecer essa transição na indústria automotiva?  

A reforma tem que ter concordância de como nós, como país, vamos tratar a questão do carbono. Outras regiões claramente estão colocando uma questão clara para a descarbonização. 

E aí tem a segunda palavra importante para mim, que é previsibilidade. As regras do jogo, os alinhamentos básicos devem estar claros, sobretudo para a nossa indústria, que investe com prazos de quatro, cinco anos para frente. A renovação do parque é importante nesse processo de descarbonização. 

A Toyota acaba de encerrar um ciclo de investimento de R$ 1 bilhão no país, na fábrica de Indaiatuba. Qual a previsão de um novo ciclo de investimentos? Quais são as variáveis que você troca com a matriz para entender se faz sentido investir aqui ou não? 

Primeiro, nós acreditamos no potencial do Brasil e da região. Nesse sentido, nossa visão é de médio e longo prazo. Agora estamos no processo de avaliação do próximo ciclo de investimentos. E tem muito a ver com como está evoluindo a competitividade do país, mas também nossa própria competitividade, com redução de custos, mais produção local de peças. Na parte de reforma tributária, todo mundo está esperando, novamente, previsibilidade, isonomia e simplificação. 

O futuro da mobilidade de baixo carbono também é uma questão? Boa parte dos investimentos hoje no mundo está sendo feita para adaptar a produção para esse novos tipos de veículos eletrificados… 

Essa é outra variável. Ainda não temos visão muito clara de qual é a política de estado referente à eletrificação. Mas, mesmo não tendo essa visão, vamos continuar nesse caminho. Nossa decisão de trazer o híbrido flex veio há mais de três anos. 2019 foi o lançamento do modelo e o período de avaliação de discussão foi muito longo. O assunto de descarbonização ainda não estava em pauta.

Hoje, apenas 1,5% dos veículos vendidos são elétricos no Brasil, o que inclui híbridos e EVs, de acordo com a Anfavea. A Fiat declarou que os elétricos podem responder por 11% do mercado até 2030. Você arriscaria um chute?

Hoje as coisas mudam tão rápido que essas previsões às vezes ficam datadas e é difícil dar um palpite. Há dois ou três anos, ninguém achava que estaríamos com 1,5% das vendas de veículos elétricos agora. Mas, se só no Corolla já são 30% [de híbridos flex], dá para pensar que outros produtos também podem ficar nesse nível. Obviamente para carros menores, pela sensibilidade ao preço, esse percentual pode ser menor.