Na Eve, de carros voadores, o plano de voo começa pelo Brasil

Spinoff da Embraer busca aprovação do regulador brasileiro e quer começar fabricação dos eVTOLs no país

Ilustração mostra eVTOL decolando de vertiporto
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AUSTIN, Texas* – O Brasil é um forte candidato para receber o primeiro voo da Eve, a empresa nascida da Embraer e que está desenvolvendo um eVTOL, carro voador elétrico que promete transformar a mobilidade urbana.

Desde que se listou na Nasdaq, no ano passado, a empresa vem sinalizando que os primeiros voos comerciais devem acontecer em 2026 

“O que posso dizer é que vai acontecer em algum lugar das Américas, mas o Brasil está muito bem posicionado”, afirmou o co-CEO da companhia, André Stein, em entrevista ao Reset, durante o South by Southwest, festival anual de criatividade e inovação que acontece em Austin, no Texas. 

A Eve está começando a pedir a certificação para sua aeronave via Anac, o regulador brasileiro, seu primeiro módulo de produção deve ficar no Brasil e mais de 200 pedidos, dos 2770 feitos ao redor do mundo, vieram do país. 

Engenheiro com mais de 25 anos de Embraer, Stein fez carreira na área de marketing estratégico e vendas, abrindo mercados como o asiático, e foi um dos responsáveis pelo posicionamento do E2, a versão mais moderna do carro-chefe da Embraer para aviação regional. 

À frente da Eve – dividindo o comando com Jerry DeMuro, um executivo que veio da empresa aeroespecial americana BAE Systems –, ele precisa montar um quebra-cabeça intrincado para construir do zero um novo mercado. 

São três seus desafios principais: a engenharia do eVTOL, a certificação junto aos órgãos reguladores e o desenvolvimento da infraestrutura necessária para essas novas aeronaves, que vai desde a construção de ‘vertiportos’ (as bases para pouso e decolagem) até o desenho do tráfego aéreo. 

Por ora, a empresa tem uma “prova de conceito”, ou seja, os princípios básicos de design e tecnologia estão resolvidos. 

Mas é agora que o jogo começa para valer. A Eve está na fase final de seleção dos fornecedores responsáveis pelos principais componentes, como motores e baterias. 

“Viemos desenvolvendo os blocos do sistema e este ano temos uma parte muito relevante que é definir os fornecedores. A partir disso, vamos começar a realmente a detalhar a arquitetura [do veículo] com um contrato formal com essas empresas que vão fazer partes muito críticas da aeronave”, diz Stein. 

A bateria é um desses componentes. Apesar de ser de íons de lítio, a mesma tecnologia-base usada nos carros elétricos, ela precisa de uma densidade de energia muito maior – e, por isso, tende a ser maior e mais pesada.  

“Não precisamos de um salto de tecnologia para a bateria, mas tem uma questão de como ela vai ser montada para garantir uma série de atributos”, afirma o CEO, acrescentando ainda que ela precisa ser certificada para uso aeroespacial. 

A vida útil da bateria num eVTOL tende a ser pequena, de cerca de um ano, diz Stein. Isso permite que ela seja atualizada conforme avança a tecnologia. 

A questão é o que fazer com a bateria quando ela não pode ser mais usada no carro voador. Uma das hipóteses já pensada pela empresa é usá-la para aplicações que não exijam performance máxima, como armazenamento de energia nos vertiportos, por exemplo. 

Stein evita dar uma previsão para lançar um protótipo e um voo de teste. A alemã Volocopter, por exemplo, já fez três demonstrações de seu modelo. 

“Não estamos correndo para voar alguma coisa só para mostrar para os investidores. Estamos focados no desenvolvimento final e na entrada do serviço”, diz. “E, até por ser da aviação, temos a preocupação de fazer as coisas com cuidado, abaixo do radar.”

Funding

Com o dinheiro fugindo do risco e ficando cada vez mais escasso para startups, o CEO da Eve afirma que não precisa acessar o mercado.

A empresa levantou US$ 370 milhões no IPO, feito por meio de uma fusão com um fundo listado em bolsa em dezembro de 2021, no ocaso da febre dos chamados ‘SPACs’. 

Em setembro do ano passado, a United Airlines fez um aporte de US$ 15 milhões e se tornou acionista. Logo em seguida, o BNDES aprovou um empréstimo de US$ 90 milhões, com juros subsidiados, voltados ao desenvolvimento da tecnologia – o que tem acontecido majoritariamente no Brasil. 

“No ano passado, queimamos US$ 100 milhões de caixa e captamos cerca de US$ 100 milhões, estamos bem cobertos”, diz Stein. 

Quando entrar em produção, a Eve vai produzir em “módulos”, com fábricas de menor escala, para aplicar o dinheiro de forma gradual. Já foi anunciado que a primeira delas será no Brasil – com localidade ainda não definida.

“Em vez de ter uma linha para fazer as 3 mil aeronaves que a gente espera estar entregando por ano quando estiver mais maduro, vamos fazer várias linhas com capacidade menor. O mercado está crescendo? Faço outro módulo. Com isso,  distribuímos o investimento ao longo do tempo”, afirma o CEO.  

Certificação e parceria com a Embraer

A parceria com a Embraer – que segue como maior acionista – é um dos principais trunfos da Eve, na visão do co-CEO. 

Entre as startups de eVTOL, a Eve é a que tem a maior quantidade de cartas de intenção de compras. São 2770, assinadas por clientes que vão de empresas aéreas, como a United Airlines, a operadoras de helicópteros e aplicativos de corridas de carro, que querem garantir um lugar na fila para a hora que o projeto sair do papel. 

Mas a concorrência é grande, de empresas como a californiana Joby, a alemã Volocopter e a inglesa Vertical.

“Só nos últimos 25 anos, a Embraer já produziu 30 modelos diferentes de aeronaves. Ninguém mais que está no mercado tem isso”, afirma Stein.

Além do desenvolvimento, a principal sócia dará acesso também à infraestrutura para manutenção dos eVTOLs e entradas importantes em questões como controle de tráfego aéreo, que será construído do zero para a nova categoria. 

“Tudo isso nos posiciona para ter um eVTOL mais eficiente e, consequentemente, com o melhor custo operacional.”

Numa corrida pelo primeiro carro a voar comercialmente, a Eve também está optando por fazer a certificação da aeronave primeiro no Brasil, na Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), em vez de ir direto para a equivalente americana, a FAA. 

Apesar das inúmeras indefinições, as conversas com o regulador já começaram de forma oficial – e, se a aeronave receber a certificação brasileira, depois se beneficia de uma espécie de ‘fast-track’ com a agência americana para validá-la, por conta de um acordo entre os dois órgãos. 

“Ser a única empresa ajuda para caramba porque não temos a atenção dividida da Anac. Na FAA, você tem uma fila de várias empresas aplicando diretamente, que cria uma competição por recursos do organismo certificador”, diz Stein. 

É um carro? Um helicóptero? 

Num estande concorrido no SXSW, faltou a cereja do bolo: as asas e os rotores – similares aos de um drone –, que fazem com que o veículo decole verticalmente antes de seguir viagem em linha reta. 

Mas um protótipo em tamanho real da cabine parecia muito com a de um helicóptero, ainda que com um tamanho um pouco reduzido. Um lugar na frente para o piloto e quatro lugares atrás, com duas cadeiras em cada ponta. 

Parece, mas não é, diz Stein. Os helicópteros são máquinas muito mais complexas e portanto geram mais manutenção. E seus pilotos precisam de habilidade e perícia, o que custa anos de treinamento e horas de voo.

Além de ser elétrico (e portanto não emitir gases de efeito-estufa e fazer bem menos barulho), o eVTOL funciona num esquema conhecido como fly-by-wire. É o mesmo esquema dos aviões, em que a viagem acontece praticamente no piloto automático. 

De fato, o protótipo da cabine do piloto é bem mais simples, com apenas uma tela e uma alavanca.

“A intenção é que em algum momento o eVTOL seja autônomo. Hoje o desafio é menos de tecnologia do que de regulação e até cultural”, diz Stein, lembrando da resistência inicial de voos comandados por software.

Segundo o executivo, hoje a expectativa é que um eVTOL saia por cerca de US$ 3 milhões. 

Nas contas dele, um voo de até 100 km deve sair por cerca de US$ 100 – um preço  que hoje já compete com uma corrida de táxi do aeroporto JFK até Manhattan, por exemplo. “E a tendência é que vá diminuindo”, diz ele.

A Eve tem conversado com governos estaduais e municipais para desenvolver os ‘vertiportos’, espécie de aeroportos no meio da cidade, além de toda a infraestrutura que vai ser necessária para operar o novo modal de mobilidade urbana. 

Orlando, na Flórida, já tem um plano pensando o potencial desse tipo de transporte para parques, resorts e universidades. No Brasil, há conversas com São Paulo e Rio. Outra questão é a infraestrutura para carregamento dos eVTOLs: a EDP e a Acciona Energia são empresas que já estão estudando alternativas junto com a startup. 

* A repórter viajou a convite do Itaú