Na contramão: Engie busca R$ 600 milhões em debêntures para financiar térmica a carvão

Operação, coordenada pelo BTG Pactual, recebe críticas de investidores por financiar a fonte mais poluente de energia

Na contramão: Engie busca R$ 600 milhões em debêntures para financiar térmica a carvão
A A
A A

Em tempos em que ninguém mais questiona a necessidade de se adotar fontes de energia limpas e o mercado de green bonds ganha impulso no país, uma emissão de debênture em fase de roadshow tem deixado um rastro de polêmica entre investidores e analistas antenados com a emergência climática.

A elétrica Engie está tentando levantar R$ 582 milhões via debêntures para financiar parte dos custos de construção de uma térmica movida 100% a carvão no Rio Grande do Sul.

Trata-se da usina de Pampa Sul, que começou a operar em meados do ano passado, e que a própria Engie vem tentando vender como parte do seu plano de descarbonização.

O papel está sendo trazido a mercado pelas mãos do BTG Pactual, único coordenador da operação, que receberá pelo serviço uma comissão de ao menos R$ 34 milhões (sem contar uma taxa de sucesso prevista em contrato).

No começo do ano, o BTG anunciou a criação de uma área de impacto e ESG e afirmou, em entrevista ao Reset, que pretendia se firmar como um líder em emissões de dívida verdes.

De lá para cá, o banco tem participado de várias ofertas com apelo sustentável. Mas, no que muitos no mercado enxergam um sinal de incoerência com a política anunciada, assumiu também o mandato da Engie.

Alternativa energética mais poluente entre todas, as térmicas a carvão têm sido abandonadas por países e empresas que buscam se alinhar ao Acordo de Paris rumo a uma economia de baixo carbono. Com isso, hoje são tidas como as maiores candidatas a se tornar ativos obsoletos num futuro não muito distante.

Um ativo à venda

Não é diferente aqui. A Engie, de capital francês e uma das maiores elétricas do mundo, se comprometeu, em 2016, a descarbonizar sua atividade de geração e tomou a decisão de se desfazer de ativos a carvão.

No Brasil, o grupo é líder em geração de energia e tem quase 90% de seu parque instalado limpo. Alinhada à matriz, a companhia anunciou a intenção de vender suas térmicas a carvão, incluindo a usina Pampa Sul.

Até agora, entretanto, a empresa não teve sucesso. Houve tratativas em 2017 com a britânica Contour Global e em 2018 com a chinesa Spic, que não progrediram.

O CEO da companhia, Eduardo Sattamini, tem reiterado o interesse de vender Pampa Sul, que entrou em operação há pouco mais de um ano.

É um sinal de uma nova tendência global que a Engie busque se desfazer de um ativo tão novo e no qual investiu bilhões.

Pampa Sul foi a última termelétrica a carvão viabilizada por um leilão de energia do governo federal, ainda em 2014. Ou seja, quando a francesa decidiu fazer o investimento, o mercado era outro e a descarbonização da matriz ainda era pouco falada. O contrato de fornecimento da usina vai até 2043, ou seja, é de longuíssimo prazo.

“É difícil imaginar que até lá as térmicas a carvão ainda serão viáveis”, diz um gestor de fundos de renda fixa que está avaliando a emissão da Engie.

Enquanto a venda segue emperrada, com a emissão da dívida a Engie busca se reembolsar de aproximadamente 20% dos custos que teve para construir a usina.

No total, foram gastos R$ 2,8 bilhões — R$ 728 milhões financiados pelo BNDES e o restante com capital da própria Engie.

Ainda em 2018, quando o processo de venda estava ativo, comentava-se no mercado que a Engie já não esperava recuperar o valor investido na construção de Pampa Sul. Ao tomar a dívida, a companhia libera ‘equity’ e otimiza a estrutura de capital do projeto.

Gestores de renda fixa e analistas, especialmente aqueles com foco maior em ESG, têm questionado a decisão da Engie de emitir debêntures para um projeto de energia suja do qual a própria companhia quer se livrar.

Na visão de um gestor, o investidor que comprar esse papel, especialmente o de varejo, pode achar que está comprando o risco Engie, quando, na verdade, estará assumindo o risco de um controlador desconhecido e, provavelmente, de qualidade de crédito inferior.

A debênture da Engie está sendo oferecida no formato de oferta pública, nos moldes da Instrução 400 CVM, que permite uma distribuição mais ampla entre investidores.

É um caminho que tem sido menos trilhado pelas companhias. A maioria delas opta pela oferta restrita, pela Instrução CVM 476, que permite a oferta apenas para 50 investidores profissionais e é muito mais célere. Foram mais de 50 ofertas restritas e apenas 2 públicas de debêntures neste ano.

O contrato de fornecimento de energia até 2043 é um grande atrativo e atenuante do risco de crédito e, sem dúvida, foi a principal razão para o papel ter obtido um rating alto independentemente do controlador (o chamado ‘stand alone basis’, no jargão das agências de classificação de risco).

Mas o mesmo gestor argumenta ainda que, no muito provável cenário de se criar um mercado regulado de carbono ou uma taxação sobre emissões de CO2 no país, a térmica a carvão será mais penalizada que qualquer outra fonte de energia. “Seria um custo tão alto que inviabilizaria a operação.”

O prospecto da oferta não faz qualquer menção a riscos associados a meio ambiente entre os chamados fatores de risco.

Procurada, a Engie não comentou a operação por estar em período de silêncio.

Comissão polpuda

Além das ressalvas à empresa, a participação do BTG como coordenador tem atraído críticas.

Hoje, conforme o sistema financeiro avança no sentido de adotar critérios ambientais cada vez mais rigorosos em suas operações, vários bancos já têm como política de suas áreas de crédito, e mesmo de mercado de capitais, a exclusão de ativos ligados a carvão.

O banco não comentou a operação por conta do período de silêncio.

Segundo pessoas familiarizadas com o assunto, no entanto, o banco tem esclarecido que a operação recebeu o sinal verde da sua área de ESG devido a alguns fatores.

Em primeiro lugar, porque a emissão não irá financiar uma nova usina a ser construída, mas sim reembolsar a Engie de um investimento já feito. Sob essa lógica, a operação liberaria recursos para a companhia investir em projetos de energia limpa, contribuindo para a transição energética.

Analistas com foco em ESG consideram a justificativa insuficiente. “Esse tipo de argumento abre espaço para que se financie qualquer coisa para qualquer um”, diz um deles.

A área de ESG do banco também teria levado em conta uma série de políticas ambientais e sociais adotadas na termelétrica e, em especial, o fato de a usina ter sido construída utilizando tecnologias de ponta de “carvão limpo”, que reduzem consideravelmente as emissões de gases poluentes.

Em relatório para investidores, os analistas do BTG destacam essa questão e concluem que “isso não mitiga completamente o impacto de suas operações no meio ambiente”.

Gestores que avaliam a oferta também chamam a atenção para o tamanho da comissão a ser paga ao BTG, que estaria acima do convencional.

O banco receberá 5,83% do valor captado, ou R$ 33,9 milhões, e esse percentual ainda deve subir por conta da taxa de sucesso prevista. O valor inclui a remuneração pelo fato de o banco ter dado garantia firme para 100% da oferta. Ou seja, na ausência de demanda, o próprio banco vai encarteirar os papéis e, no limite, dar crédito associado à térmica.

Em uma outra emissão encerrada em fevereiro deste ano, a Engie pagou 1,65% em comissões totais. Em oferta pública de debêntures em agosto, a elétrica Eneva desembolsou pouco menos de 4% em comissões. Fatores como interesse de bancos em pegar o mandato, grau de dificuldade de colocação do papel e complexidade da estruturação da operação costumam definir os percentuais.

No caso de Pampa Sul, se tratava de uma operação em ‘estado bruto’, de um emissor que nunca tinha vindo a mercado, sem rating e que precisava passar por todas as etapas e obter os registros. Tudo isso pode ter contribuído para engordar a comissão. Mas quem está acostumado a avaliar ofertas semelhantes questiona se a natureza do ativo também pode ter pesado.

A emissão terá duas séries. Na primeira, os papéis têm prazo de oito anos e, na segunda, de 16 anos. Os juros pretendidos embutem um bom prêmio, entre 3,5% e 4,15%, sobre os títulos do Tesouro de prazo semelhante. Como são debêntures de infraestrutura, ainda contam com isenção fiscal para investidores pessoa física. Os papéis foram considerados ‘triple A’ pelas agências de risco Fitch e S&P.

O período de reserva para os investidores colocarem suas ofertas começa no próximo dia 5 e o fechamento da operação será em 23 de outubro. Hoje acontece um grande evento online de apresentação a investidores, como parte do roadshow.