Mercado de seguros no Brasil já sente efeitos da mudança climática

Desastres como o do litoral paulista desafiam modelos estatísticos e levantam debate sobre precificação dos riscos climáticos no setor

Barra do Sahy
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O aumento da frequência de eventos climáticos extremos já produz efeitos sobre o setor de seguros no Brasil. A tragédia no litoral paulista durante o Carnaval é o mais recente sinal.

Uma das principais seguradoras no setor de automóveis, a Porto Seguro atendeu oito vezes mais acionamentos do que a média para o período nas cidades de São Sebastião, Guarujá e Bertioga – mais atingidas pelas chuvas dos dias 18 e 19. Uma semana após a tragédia, foram feitas 2.600 assistências a veículos e outras 750 a passageiros nessas localidades. O custo disso ainda não foi determinado. Os valores de perdas por apólices devem ser calculados e publicados nos próximos dias.

As regiões atingidas pela maior tempestade já registrada no país são prioritariamente residenciais, o que causou 65 mortes até agora e fez com que mais de 2 mil pessoas perdessem tudo e ficassem desabrigadas, mas poupou de perdas grandes empresas que operam na região. O Porto de Santos chegou a parar por algumas horas, mas nada que fuja do comum.

No ano passado, o setor agrícola, um dos mais relevantes para o PIB brasileiro, amargou fortes perdas ocasionadas por chuvas em excesso ou estiagem prolongada. E o mercado segurador foi diretamente afetado.

Só no primeiro semestre de 2022, as resseguradoras amargaram prejuízo de R$ 4,6 bilhões com o seguro rural, 18 vezes mais que igual período do ano anterior, no pior desempenho da série histórica, de acordo com dados da Superintendência de Seguros Privados (Susep). Segundo reportagem do Valor, a explosão da sinistralidade se traduziu em aumento do custo das apólices para os produtores rurais.

E 2023 já começa problemático para o setor. No Rio Grande do Sul, pela terceira safra consecutiva, lavouras e pastagens sofrem com a seca. O prejuízo é estimado em R$ 28,4 bilhões pela FecoAgro/RS, que compreende 21 cooperativas do sistema agropecuário gaúcho.

No mundo todo, as mudanças climáticas se tornaram críticas para o setor de seguros, já que os prejuízos crescentes com perdas humanas e patrimoniais impõem um desafio sem precedentes para o cálculo de riscos, ameaçando a saúde financeira das seguradoras.

Um estudo da gestora de riscos Aon mostrou que no ano passado as catástrofes naturais causaram perdas de US$ 313 bilhões às seguradoras ao redor do globo, com um aumento de 4% em relação à média do século 21. No Brasil, aponta o relatório, as estiagens ocasionaram perdas de US$ 4,2 bilhões e as enchentes, US$ 1,3 bilhão.

Lógica do retrovisor

O diretor de assistência e sinistros da Porto, Marcelo Sebastião, diz que a tragédia no litoral paulista e outras enchentes em anos anteriores ainda são encarados pela empresa como eventos pontuais e, por ora, não representaram um aumento de sinistralidade “tão drástico ou relevante que mereça alteração considerável” nos preços dos seguros de automóveis.

Mas a agência de rating de crédito Moody’s emitiu uma nota após as enchentes do Carnaval em que alerta para o aumento do perfil de risco de crédito de seguradoras brasileiras, em especial das mais expostas à cobertura de automóveis e de propriedade.

“Se o país passar a enfrentar eventos semelhantes aos recentes, pode haver um aumento da demanda por coberturas de seguros. Um dos desafios para as seguradoras será o de precificar suas tarifas para refletir os potenciais riscos decorrentes dessas coberturas”, diz Diego Kashiwakura, analista sênior da Moody’s no Brasil.

O ‘xis’ da questão é que a crise climática desafia a lógica do retrovisor na qual se baseia o mercado segurador. 

A modelagem de preços dos seguros sempre foi baseada em dados estatísticos de períodos anteriores. “Só que os riscos climáticos estão aumentando progressivamente e olhar para trás é um erro”, diz a fundadora e diretora executiva da associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS), Luciane Moessa, que conta com anos de experiência no mercado financeiro e de sustentabilidade.  

“Qualquer modalidade de seguro em qualquer região de maior exposição a tais riscos, se não considerar isso, está ameaçada de não ter condição de cumprir seus pagamentos”, afirma Moessa.

Informações de décadas passadas já não são precisas, em meio a uma mudança “tão rápida e drástica”, concorda o diretor de especialidades da corretora de seguros e consultoria de riscos Marsh Brasil, Ricardo Ciardella. 

Ele diz que, na Marsh, que é uma das maiores consultorias de risco do mundo, já foi percebida uma tendência de alta de preços para o seguro patrimonial e para alguns segmentos específicos da economia no Brasil que de alguma forma contribuem para o aquecimento global.

Hoje, diz ele, o mercado ainda não vê o Brasil como um país de exposição catastrófica, como ocorre com o Chile e seus terremotos. “Isso pode mudar, mas ainda é cedo para dizer.”

Seguindo o posicionamento de outros reguladores do setor de seguros no mundo todo, que buscam preparar as empresas para lidar com a nova realidade imposta pela crise climática, no ano passado a Superintendência de Seguros Privados (Susep) aprovou a Circular 666, que obriga a adoção de instrumentos para a gestão de riscos ambientais, sociais e climáticos pelas seguradoras. 

Além do ajuste nos preços, uma outra consequência da maior ocorrência de eventos climáticos, somada ao aperto regulatório, pode ser uma oferta mais restrita de produtos. 

“É natural no mercado de seguros que, conforme a experiência de sinistro vá aumentando ou se tornando mais notória, as seguradoras comecem a fechar os seus produtos. Elas começam a desenhar contratos com coberturas cada vez menos amplas”, diz Ernesto Tzirulnik, advogado especialista em seguros.

Na outra mão, também surgem produtos que buscam responder aos novos riscos. Ciardella diz que a Marsh tem apostado na oferta do chamado seguro paramétrico, que tem conquistado espaço especialmente no setor agrícola.

Por trás do palavrão, o conceito é relativamente simples: em vez de estar atrelado a um dano material como a perda da safra, o seguro é acionado em caso de variação de alguns parâmetros, como queda da produtividade ou redução da qualidade do produto devido a eventos climáticos. Na prática, o produto funciona como um estabilizador da receita para o produtor rural.