Materialidade financeira: quando metade da história fica de fora

TCFD e ISSB vêm caminhando para cobrar a divulgação apenas do impacto do clima sobre os negócios, deixando o investidor no escuro sobre os riscos do caminho inverso

Via pavimentada com duas setas pintadas em amarelo em direções opostas
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Desde que ESG começou a bombar por aqui em meados de 2020, fiquei intrigada com a abordagem que o mercado financeiro vinha dando ao tratamento e divulgação de dados ambientais, incluindo clima. 

Os sistemas de gerenciamento de riscos corporativos vinham sendo atualizados para incluir a variável ambiental e resultaram em mapas de riscos e matrizes de materialidade mais robustos. 

Parecia razoável, portanto, que os dados divulgados ao mercado incluíssem todos esses dados. Mas não é bem assim.

Segundo a abordagem do mercado financeiro, capitaneada pela TCFD, os riscos ambientais e climáticos a serem divulgados aos investidores são aqueles que impactam negativamente o valor do negócio na perspectiva “de fora para dentro”. Por exemplo, como as mudanças climáticas e a escassez hídrica afetam o valor de um negócio. 

Os impactos causados pelo negócio no ambiente em geral, na perspectiva “de dentro para fora” — via emissão de gases de efeito estufa, consumo excessivo de água ou contaminação, por exemplo — não afetariam o valor do negócio. 

A lógica é que não haveria materialidade financeira, logo, não deveriam ser reportados. Sim, é isso mesmo, apesar de ser um absurdo completo. Para aqueles que trabalham com sustentabilidade há algumas décadas, fica nítido que a divulgação de dados ambientais embasada na materialidade financeira provê ao investidor apenas metade da história. 

Para tomar decisão informada para alocar capital, certamente a outra metade da história é tão relevante quanto. A dupla materialidade é essencial.

Enquanto a Comissão Europeia vem batendo nessa tecla, o ISSB parece seguir na linha da TCFD de manter apenas a materialidade financeira como base para os futuros padrões de divulgação relativos à sustentabilidade, para desolamento daqueles que esperam um passo a mais.

Nesse meio, temos a SEC. Apesar de historicamente seguir apenas a materialidade financeira, o regulador do mercado de capitais americano havia dado sinal brando de que poderia estar caminhando para a dupla materialidade ao englobar as emissões de gases de efeito estufa de escopo 3 (emissões indiretas, ocorridas na cadeia de valor da empresa) na proposta de divulgação de dados climáticos. 

Risco materializado

Uma decisão recente — e que envolve o Brasil — deixou clara a importância de se avaliar as duas mãos quando o assunto é materialidade.

A SEC impôs uma multa de US$ 12 milhões como parte de um acordo celebrado com a Compass Minerals, listada na Nyse, por conta de uma antiga unidade de negócios localizada em Pernambuco. 

Parte do valor foi estipulado devido ao controle deficiente de divulgação de dados, uma vez que a empresa falhou ao não avaliar corretamente e divulgar os riscos financeiros derivados de uma contaminação por mercúrio decorrente da sua operação. Além disso, a companhia encobriu a contaminação quando submeteu laudos imprecisos às autoridades ambientais brasileiras. 

Contaminação significa risco ambiental materializado, ou seja, dano. Dano ambiental causado pela empresa, o qual certamente impacta negativamente o valor do negócio. 

Mas essa parte da história só aparece se a divulgação da empresa estiver embasada na dupla materialidade. 

Será que o CFO estava envolvido e conhecia o risco, mas o entendeu como irrelevante do ponto de vista financeiro? Será que não havia provisão para remediar e/ou indenizar o dano causado?

Voltemos ao mapa de risco – nem é necessário chegar na matriz de materialidade. Seria possível imaginar que o mapa de risco desse negócio não tivesse a contaminação mapeada, se até mesmo se usou de subterfúgios em laudos para encobrir a contaminação? Claramente, não.

Essa decisão da SEC mostra, de forma inequívoca, que os impactos dos negócios no ambiente são relevantes porque impactam o valor do negócio e devem ser parte dos dados sobre sustentabilidade divulgados aos investidores. 

Mais que isso, ela mostra que é essencial que os profissionais de finanças trabalhem em conjunto com os profissionais de sustentabilidade para que esses “novos” riscos constem de forma adequada em todas as divulgações, de relatórios de sustentabilidade e links de relação com investidores a fatos relevantes, relatórios anuais e demonstrações financeiras.

A hora de mergulharmos, com transparência, ética e integridade na dupla materialidade e divulgar dados reais sobre sustentabilidade dos negócios chegou.