Jeffrey Sachs: Mercado de carbono é pouco para proteger Amazônia

Uma das vozes mais respeitadas do mundo em desenvolvimento sustentável, economista se uniu a Carlos Nobre no Painel Científico para a Amazônia

O economista americano Jeffrey Sachs
A A
A A

Em agosto de 2019, o então diretor do Instituto de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, foi demitido por causa da divulgação de dados de desmatamento na Amazônia.

No dia seguinte, o economista americano Jeffrey Sachs, uma das vozes mais respeitadas do mundo quando se fala em desenvolvimento econômico sustentável, entrou em contato com o cientista brasileiro Carlos Nobre.

Naquela conversa gerou-se o embrião do Painel Científico para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês), iniciativa que reúne mais de 240 cientistas de várias disciplinas para entender os riscos enfrentados pela floresta.

Eles são muitos, diz Sachs em entrevista ao Reset, e resolvê-los exigirá um nível de cooperação e investimentos sem precedentes.

Na atual ausência das mínimas políticas governamentais, muito se fala no potencial dos créditos de carbono, uma maneira de financiar iniciativas de conservação e reflorestamento.

Sachs não demonstra empolgação com a ideia. “No geral, considero um instrumento bastante fraco”, afirma o economista, professor da Universidade Columbia, ex-assessor especial do secretário-geral da ONU e, com Nobre, co-presidente do SPA.

“Talvez eles possam ser desenhados de uma maneira que realmente funcione. Até aqui, são voluntários, controversos, não muito convincentes e têm pequena escala.” Os países ricos terão de ajudar a pagar a conta, afirma.

E temos de estar prontos para manter em pé e intocada a maior parte da floresta. Ele enxerga um mapa em que parte da Amazônia seja dedicada à bioeconomia.

Quanto ao restante, vamos descobrir se somos capazes de dizer não à exploração econômica, diz Sachs. Será um teste “da natureza humana, do nosso autocontrole”.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.


Qual o risco de a Amazônia atingir o ponto de inflexão e entrar em um processo acelerado de perda de cobertura vegetal?

A Amazônia está sendo atacada de duas maneiras muito diferentes. A primeira é o desmatamento e a mudança de uso da terra, que afeta a floresta diretamente e também interfere no ciclo hidrológico. 

Esse ciclo permite que a Amazônia floresça e também leva para outras partes do Brasil chuvas vitais para a agricultura e para o bem-estar do país.

As mudanças climáticas também afetam a Amazônia. O aquecimento global é uma ameaça direta ao ecossistema da região. Existe a hipótese de uma possível secagem substancial da Amazônia, causada por forças externas, como a mudança nas correntes de ar.

Em comparação com a emergência climática, o tema da biodiversidade recebe menos atenção. Como trazê-lo para o primeiro plano?

A perda da biodiversidade pode representar uma tragédia humana de grande escala não só para quem vive ali e depende da floresta, mas para todo o mundo. Ela é um patrimônio global quando pensamos no planeta em que queremos viver e também nos alimentos, remédios e outros bens que conhecemos ou vamos conhecer e que vão melhorar nosso bem-estar.

Somos uma geração irresponsável e perdulária. Estamos destruindo uma herança de dezenas de milhões de anos… porque podemos.

Não porque isso é a coisa certa a fazer ou porque pensamos a respeito, mas porque empresas gananciosas e políticos cínicos e míopes se juntam para obter o que acreditam ser lucro ou vantagem de curto prazo.

As perdas são irreparáveis e enormes. Não sabemos o tamanho exato porque ainda estamos descobrindo fatos básicos sobre esse ecossistema e o papel dele numa vida saudável para o planeta.

Bilhões de dólares já foram comprometidos com programas de conservação ou reflorestamento na Amazônia, a maioria deles vinculados a créditos de carbono. Qual é a sua opinião sobre este instrumento?

Não sou muito fã desses mercados de carbono. No geral, considero um instrumento bastante fraco. É o tipo de coisa proposta por pessoas que não querem pensar muito no assunto, gente rica que não contribui se não puder lucrar.

Talvez eles possam ser desenhados de uma maneira que realmente funcione. Até aqui, são voluntários, controversos, não muito convincentes e têm pequena escala. Certamente não estão protegendo a Amazônia.

Acredito muito mais em políticas públicas, embora não acredite muito em políticos, porque eles são… [Sachs balança a cabeça e solta um grunhido de exasperação]. Não sei nem o que dizer sem ser mal-educado.

Sei que sou contraditório. Acredito em políticas públicas, mas não em políticos. Não consegui resolver esse problema. Mas não podemos depender [apenas] dos mercados voluntários de créditos em face do problema que estamos enfrentando. Tudo seria destruído antes que se alcançassem respostas em escala.

Confesso que não vejo a solução óbvia para isso a não ser a sorte de ter bons líderes, que de vez em quando chegam ao poder. Nesses momentos, temos de aproveitar para colocar em prática políticas que façam diferença duradoura.

Que tipo de políticas públicas deveríamos implementar agora para evitar o pior?

As soluções incluem medidas como fiscalização. Houve um período no Brasil, basicamente durante o governo Lula, em que a Amazônia foi protegida e o desmatamento teve queda acentuada porque as leis se faziam cumprir. Este é o primeiro passo.

O segundo é criar uma uma bioeconomia viável e sustentável, usando os frutos da floresta tropical de forma criativa, inovadora e baseada em pesquisa e desenvolvimento.

Muitas das melhores conquistas do Brasil vieram de grandes programas de pesquisa, especialmente na agricultura. Uma das propostas do Painel Científico para a Amazônia é criar uma instituição de pesquisa e desenvolvimento na região.

Um terceiro ponto bastante óbvio é que o mundo inteiro deveria estar ajudando a financiar o manejo sustentável da floresta. Já existe um fundo da Amazônia, lançado pela Noruega, com contribuição da Alemanha.

Na verdade precisamos de mais. O Brasil é o guardião e o anfitrião da maior parte da floresta, mas ela é um bem do mundo inteiro. Não precisamos de US$ 1 bilhão de dólares, precisamos de financiamento em escala. A economia mundial gera US$ 100 trilhões, podemos nos dar ao luxo de salvar a Terra.

A campanha de Lula falou em uma aliança que reúna Brasil, Indonésia e Congo, onde ficam as três grandes florestas equatoriais, para mapear um sistema de cooperação e financiamento global real, sem depender dos pequenos mercados voluntários [de créditos de carbono].

Mas capital privado também será necessário para compor a enorme quantidade de dinheiro necessária, não?

É possível que instrumentos de mercado sejam usados ao lado de políticas públicas. Mas ainda não se encontrou um sistema eficaz além do mercado voluntário. Em termos transnacionais, ainda não temos uma maneira de atribuir um valor monetário à floresta mantida em pé.

Não é impossível usar forças de mercado, mas até agora as tentativas foram fracas. Os Estados Unidos sempre insistem nessa tese, mesmo que ela seja inadequada.

Não descarto essas soluções de partida. Quero apenas apontar que elas não são a única alternativa, não serão suficientes e tipicamente não são confiáveis.

E com relação à infraestrutura? Para transformar em realidade a ideia de uma bioeconomia não precisaremos de alguns investimentos básicos?

Temos de ser extremamente cuidadosos com infraestrutura, principalmente de transporte. Todo mundo sabe que abrir uma estrada significa vicinais, a criação de cidades… Goste ou não, você gerou mais desmatamento.

O que sempre desejei, e ainda não chegamos lá, é um mapa da Amazônia mostrando o que será absolutamente protegido, em que partes a extração da floresta será necessária e administrável e onde podemos introduzir a bioeconomia sem impacto negativo nessas condições macro do meio ambiente.

Precisamos de um sistema confiável que explique como novas iniciativas [econômicas] não são apenas o começo de uma nova onda de devastação.

Conheço bem a situação na Indonésia, na Malásia. O óleo de palma foi uma inovação. Era uma nova maneira de ganhar muito dinheiro. Valia a pena derrubar a floresta para plantar palmeiras. Você poderia cortar todas as árvores do arquipélago indonésio para plantar palma e ainda assim ganhar dinheiro.

Uma parte importantíssima é a capacidade de dizer: “Não. Este aqui é o limite”.

Em termos de tamanho, nunca se enfrentou um desafio tão grande que combine desenvolvimento econômico e respeito ao meio ambiente como o que temos na Amazônia. Existe algo em proporções menores que sirva para apontar caminhos?

O que está acontecendo, claro, é que voltando no tempo começamos principalmente com a natureza e nem tantos seres humanos. Em 1800, havia provavelmente cerca de 900 milhões de pessoas no planeta. No próximo mês, chegaremos a 8 bilhões.

A combinação de uma população massiva e um enorme salto nas habilidades técnicas significa impacto muito maior no planeta. Esse é o experimento que viemos fazendo nos dois últimos séculos: dá para destruir o planeta ou será que conseguimos nos controlar a tempo?

O verdadeiro experimento que temos de fazer é: será que conseguimos dizer não a nós mesmos? Isso significa traçar uma linha e dizer: “Vamos proteger essa área porque é bom para o planeta e para as próximas gerações”. Isso é difícil.

Esse experimento testa a natureza humana, nosso autocontrole. Somos capazes de entender que, se estamos indo para o precipício, temos de desacelerar para nosso próprio bem?

Os europeus, por exemplo, há tempos lideram a agenda climática. Na COP27, como eles poderão pedir que brasileiros ‘digam não’ ao desmatamento sendo que ao mesmo tempo estão queimando mais carvão, pensando em explorar mais petróleo?

Existe um movimento crescente que aponta o dedo para quem é fundamentalmente responsável pelo problema. Isso é muito importante. Existe uma responsabilidade histórica.

Intelectuais brasileiros estavam entre os líderes que há 20 anos trouxeram esse assunto para a mesa. Os Estados Unidos preferem ignorá-lo, porque quando você é rico e poderoso você não quer responsabilidade por nada.

Mas ouvimos cada vez mais as vozes das pequenas economias insulares, que correm o risco de afundar. Você ouve isso do Paquistão, que foi atingido por chuvas de monções sem precedentes e depois uma inundação devastadora.

O que estes países estão dizendo é: “Sabemos que precisamos fazer essas mudanças, mas isso exige financiamento”. E isso significa que os países ricos precisam assumir sua responsabilidade.

Acho que essas questões estarão na mesa na COP. Espero que tenhamos um governo no Brasil que possa se apresentar dizendo: “Sim, estamos juntos [nessa campanha] com a Indonésia e o Congo”.

Unidos, eles podem dizer: “Somos os guardiões dos recursos, mas eles são globais”.