Investimento de impacto cria locação popular no centro de SP

Dexco, Gerdau, Movida e Votorantim Cimentos investem R$ 14,75 milhões na construção do primeiro edifício; ideia é escalar projeto

Edifício com projeto da Andrade Morettin é o primeiro voltado para locação popular no Centro de SP
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Um investimento de impacto feito por grandes empresas brasileiras começa a tirar do papel hoje um projeto inédito de locação de moradia popular no centro de São Paulo totalmente concebido pelo setor privado. 

A ambição é ser uma alternativa de moradia digna – e escalável – para quem vive na periferia e gasta longas horas no transporte público todos os dias ou mora precariamente em ocupações e cortiços na região central da cidade.

A ideia do Soma, Sistema Organizado de Moradia Acessível, é comprar terrenos e construir edifícios com recursos 100% captados por meio de instrumentos financeiros de mercado e remunerar os investidores, no longo prazo, com o aluguel pago pelos moradores. Tudo isso debaixo do guarda-chuva de uma ONG, que também fica responsável pela gestão do condomínio e pela gestão social do projeto.

“Com essa estrutura, garantimos que serão prédios voltados para locação acessível para sempre, que não correm o risco de ser vendidos depois. É um projeto para ser replicado, ou então vamos apenas enxugar gelo”, diz João Paulo Pacífico, CEO da securitizadora Gaia, um dos idealizadores do Soma.

O primeiro edifício será financiado pela fabricante de acabamentos Dexco (antiga Duratex), pela siderúrgica Gerdau, pela locadora de carros Movida, pela Votorantim Cimentos e pela P4 Construtora. Juntas, as cinco empresas estão investindo R$ 14,75 milhões. A construção começa em maio e deve durar cerca de 20 meses.

O prédio, com projeto de arquitetura assinado pelo escritório Andrade Morettin, será erguido no encontro dos bairros de Santa Cecília, Campos Elíseos e República, próximo a três estações de metrô e um terminal de ônibus. Com 110 unidades, terá uso misto, com apartamentos para locação tradicional e outros para estadias de curta duração, num esquema de flats, além de espaço comercial no térreo.

O resultado será um aluguel que os idealizadores calculam que ficará, em média, 25% abaixo do praticado na região. E o desconto pode chegar a 40% em algumas unidades, porque a ideia é criar uma lógica de financiamento cruzado, em que alguns apartamentos custam mais e ajudam a subsidiar outros mais em conta.

O Soma começou a ser gestado em 2018, quando André Czitrom, CEO da incorporadora Magik JC, especializada em construir prédios de moradia popular no centro da capital paulista, se deu conta de que, a cada 5 pessoas que se interessam por comprar seu apartamentos, 3 a 4 não conseguem ter o financiamento aprovado. Ou porque não têm poupança para pagar uma entrada ou por não cumprir alguns dos pré-requisitos, como apresentar contas de consumo. “O sistema financeiro é perverso e o sistema de avaliação de crédito para locação também é antiquado”, diz.

Com a dor mapeada, Czitrom chegou a Marco Gorini, da consultoria Din4mo, especializada em estruturas financeiras para negócios de impacto, e a eles se juntou Pacífico, da Gaia. Chegaram ao desenho de locação acessível, com a ajuda do advogado Alexei Bonamin, do escritório Tozzini Freire, que se dedica a projetos sustentáveis e de impacto social.

Czitrom diz que será possível implantar um sistema mais democrático na seleção dos inquilinos se apoiando no tripé corpo-a-corpo, entrevista e suporte de uma startup como a Alpop, que já é parceira da Magik e tem tecnologia para locação para pessoas com renda informal e até negativados.

O foco são famílias com renda de três a cinco salários mínimos (R$ 2,8 mil a R$ 4,8 mil) e o aluguel não poderá ultrapassar 30% dessa renda.

“Esse não é um projeto de solução de moradia apenas, é um projeto de mobilidade social”, diz Marco Gorini, da Din4mo. “A tecnologia social de gestão pós-ocupação é a essência desse projeto.”

O IFC (International Finance Corporation) é parceiro para o desenvolver as chamadas tecnologias sociais para gestão do condomínio e dos moradores. Entre as ações previstas estão o acompanhamento da adaptação dos moradores, o incentivo ao desenvolvimento emocional e profissional, com cursos e treinamentos, e a criação e o acompanhamento de indicadores de evolução social (saúde, educação, financeiro e cultural).

Caixa e não filantropia

O instrumento financeiro por trás da empreitada é um Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI) emitido por uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) constituída dentro da ONG, que vende os títulos no mercado de capitais.

Os CRIs têm prazo máximo de 25 anos, mas a estimativa é que a amortização total aconteça no prazo de 15 a 17 anos. A partir do 18º mês os investidores passam a receber os juros.

Os papéis vão pagar remuneração de IPCA mais 2% ao ano, uma taxa relativamente baixa no contexto atual de juros em alta, com a Selic em 10,65% ao ano. Os títulos do Tesouro de duration semelhante (NTNB 2035) pagam atualmente IPCA mais 5,83% ao ano. 

Não existe modelagem de risco para esse tipo de emissão inédita, mas os organizadores consideram que o risco é bastante controlado, por causa da pulverização.

Embora notem uma carência de ‘ativos com impacto social real’ no mercado, os idealizadores dizem que a taxa não interessou a investidores financeiros nem a family offices, que demandaram retornos mais altos.

“Quando abordamos as empresas, fez sentido dentro da estratégia ESG de muitas delas, já que a maioria tem conexão com o setor da construção”, diz Pacífico, da Gaia, que está fazendo a securitização da dívida. O custo de oportunidade das empresas, que costumam investir o caixa em ativos de baixo risco e menor remuneração, também contou. 

O dinheiro investido está saindo do caixa das cinco companhias e não do bolso filantrópico. O perfil de aplicação é atípico do ponto de vista da gestão pura e simples do caixa, tanto pela taxa quanto pela falta de liquidez do papel.

“Dissemos sim logo na largada, porque é um investimento que tem conexão com nosso propósito de buscar soluções para as pessoas viverem melhor e que começa a dar uma cara ao aspecto social da nossa política ESG”, diz Guilherme Setubal , gerente de ESG da Dexco.

A companhia é a maior investidora do CRI, com R$ 6 milhões. 

Setubal reconhece que o retorno é ’mais baixo que o CDB do banco’, mas diz que ‘o projeto é muito mais que um simples investimento’.

O fato de ser um valor relativamente baixo frente ao tamanho do caixa da companhia, diz o executivo, facilitou a aprovação do instrumento.

Mas a decisão foi estratégica. “Seria mais fácil aprovar uma doação desse valor, mas a ideia foi usar capital próprio pensando em investimento de impacto”, diz. Pelo valor, bastaria a canetada do CFO, mas foi aprovada no comitê executivo e levada ao conhecimento do conselho de administração.

A Dexco espera, com isso, influenciar outras empresas a seguir o mesmo caminho. 

“Se pensarmos em 20 Somas, estamos falando de R$ 300 milhões. Para dez corporações é um valor baixo, mas que gera um impacto social significativo”, raciocina Pacífico.

O sonho, diz Gorini, é fazer entre 30 e 40 edifícios nos próximos sete anos. “É o que devemos buscar para que o projeto tenha relevância.”