Guerra na Ucrânia: a nova fronteira do ESG

Investidores e empresas tentam se distanciar de Putin – mas as consequências também serão sentidas por 144 milhões de russos

Guerra na Ucrânia: a nova fronteira do ESG
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“Toda vez que você pensa: ‘Não, ele não faria isso, certo?’ Faria, sim.” Foi essa a resposta de Fiona Hill a uma pergunta sobre a disposição do presidente russo em usar armas nucleares.

Hill, hoje no think tank Brookings Institution, é uma especialista em Rússia que estuda Vladimir Putin há mais de duas décadas e já aconselhou três presidentes americanos.

Se não há nada a fazer quanto às incertezas de uma guerra envolvendo a maior potência atômica do planeta, a estudiosa afirma que as sanções impostas pelos países ricos não serão suficientes.

“As empresas terão de tomar uma decisão. Essa é a epítome do ESG, que as empresas dizem ser a prioridade agora. Assim como as pessoas não queriam seu dinheiro investido na África do Sul durante o apartheid, você gostaria de vê-lo investido na Rússia durante a invasão brutal da Ucrânia?”, disse Hill em entrevista ao site Politico.

Esta não é a primeira vez que conflitos armados se misturam com negócios. Um exemplo recente é a extração de cobalto, metal usado em baterias, nas minas da República Democrática do Congo, país marcado por tensões étnicas há mais de 20 anos.

Mas algumas das iniciativas anunciadas por empresas antes de o conflito na Ucrânia completar uma semana indicam que a guerra vai entrar na agenda ESG.

Para algumas companhias, já entrou. A primeira grande corporação a se mexer foi a BP (antiga British Petroleum), que anunciou domingo que venderia sua participação de cerca de 20% na Rosneft, uma das estatais russas de gás natural.

Depois de mais de 30 anos no país, a petroleira considerou a invasão da Ucrânia “uma mudança fundamental (…) que levou a BP a concluir [que a associação] simplesmente não poderia continuar”, disse o presidente do conselho, Helge Lund.

Na segunda-feira, foi a vez da Shell, maior empresa de petróleo da Europa, trazer a público a decisão de encerrar suas joint-ventures com a Gazprom, maior produtora de gás do mundo. A norueguesa Equinor também vai deixar o país.

Ontem foi a vez de a ExxonMobil afirmar que vai se desfazer de sua participação em um projeto nas ilhas Sakhalinas, operado em sociedade com empresas japonesas, indianas e russas.

Além de envolver cifras de bilhões de dólares, os anúncios atingem diretamente a exploração de combustíveis fósseis, responsável por mais de 40% das receitas do governo russo.

“O poder simbólico desses anúncios é muito significativo”, afirmou em entrevista recente Antoine Halff, do Centro de Energia Global da Universidade Columbia.

Literalmente do dia para a noite, afastar-se de companhias controladas pelo Kremlin tornou-se mais importante que a perspectiva de lucrar com as reservas de petróleo e gás russas.

Ainda não se sabe o que será feito dos ativos: se eles serão colocados à venda ou se as companhias simplesmente aceitarão as perdas.

O que é certo é que tudo o que tem a ver com a Rússia – um país de relações nebulosas entre o setores privado e público desde o fim da União Soviética ­– agora é radioativo.

Limpeza nos portfólios

Um dos primeiros efeitos deve ser sentido do lado das finanças. Para além do resultado das sanções impostas à economia do país pelos governos ocidentais, muitos investidores simplesmente querem evitar qualquer relação com o país.

Com US$ 1,3 trilhão sob gestão, o fundo soberano norueguês (o maior do mundo) vai sair de todos os seus investimentos russos.

O fundo tem posições em cerca de 50 companhias do país, que correspondiam a um total de US$ 2,8 bilhões no final do ano passado. “Começamos um processo de venda”, afirmou Jonas Stoere, primeiro-ministro da Noruega.

Diante do derretimento da economia russa, encontrar compradores para títulos ou ações não será tarefa simples. A agência de análise de riscos S&P rebaixou o crédito da Rússia para junk um dia depois do começo do conflito.

Mas, com o movimento crescente em torno de investimentos que respeitem critérios ESG, será necessário fazer contorcionismos para defender a ideia de ser acionista de negócios russos.

“Putin tornou muito, muito difícil investir na Rússia, e isso deve durar um bom tempo”, afirmou à CNN Timothy Ash, estrategista da gestora BlueBay Asset Management.

A expectativa era que o JPMorgan Chase anunciasse a qualquer momento a retirada de papéis russos de índices com filtro ESG, segundo o Wall Street Journal.

Na Alemanha, a Stoxx, responsável pelos índices Qontigo da bolsa alemã, anunciou que 61 companhias seriam eliminadas de seus índices em 18 de março.

A americana MSCI, responsável por um índice influente que acompanha mercados emergentes, ainda não tomou uma decisão, mas já sinalizou que exclusões são possíveis.

Uma vez excluídas desses índices, gestores responsáveis por fundos passivos terão de vender suas participações nas companhias deletadas.

Com a invasão sendo condenada de forma enfática em quase todo o mundo e as dolorosas cenas de bombardeios se repetindo na TV e em redes sociais, o CEO de uma das maiores empresas de defesa do mundo ofereceu o seguinte argumento sobre a interseção de seu negócio com o mundo dos investimentos sustentáveis.

“Você não pode ter foco em ESG sem uma forte base de segurança”, afirmou Charles Woodburn, presidente da britânica BAE Systems.

Para Woodburn – num tipo de raciocínio que não costuma encontrar muito eco entre investidores sustententáveis –, simplesmente eliminar negócios de defesa com base e critérios ESG pode não fazer tanto sentido, pois armamentos seriam um seguro: melhor não ter de usá-los, mas bom tê-los caso seja necessário.

Muito além do Kremlin

Empresas que exportam para a Rússia também estão anunciando interrupções de fornecimento.

Uma das primeiras foi a Apple, que afirmou ontem uma pausa nas vendas de seus produtos físicos. Computadores, iPhones e iPads agora aparecem como “indisponíveis” na loja online

Serviços como Apple Pay e aplicativos de veículos de mídia controlados pelo governo russo também não podem ser mais baixados fora do país.

A Disney cancelou o lançamento de novos filmes nos cinemas. A Delta suspendeu os voos operados em parceria com a russa Aeroflot. A GM parou de enviar seus carros.

Em tese, nenhuma dessas companhias vende produtos ou serviços essenciais para a população. Mas as consequências do bloqueio internacional ainda estão longe de ser compreendidas.

Os cargueiros da dinamarquesa Maersk e da suíça MSC não vão mais levar nem trazer contêineres do país, por tempo indeterminado.

A exceção será para itens como comida, remédios, equipamentos médicos e ajuda humanitária.

Mas como o isolamento vai afetar a vida de 144 milhões de russos, muitos dos quais se opõem ao conflito, é um elemento que também deveria entrar na conta ESG feita pelas companhias mundo afora.

Como disse o CEO do JPMorgan, Jamie Dimon, à Bloomberg TV: “A guerra nem sempre segue o caminho que você quer. Sanções financeiras nem sempre seguem o caminho que você quer”.

Ações humanitárias

Algumas consequências, como um enorme número de refugiados, são esperadas. Estima-se que quase 700 mil pessoas já tenham deixado a Ucrânia.

Brian Chesky, fundador e CEO do Airbnb, afirmou que vai trabalhar em parceria com organizações internacionais para abrigar até 100 mil pessoas.

Por meio de sua subsidiária Airbnb.org, a empresa vai tentar encontrar lugar nas casas de poloneses, alemães, húngaros e romenos para oferecer a acolhida.

Para os que ficaram na Ucrânia, Elon Musk, fundador da Tesla, enviou um primeiro carregamento de terminais capazes de se conectar à internet usando a rede de satélites Starlink.

Embora a infraestrutura de telecomunicações do país ainda esteja operando, o vice-premiê ucraniano, Mikhailo Fedorov, fez um apelo via Twitter para o bilionário sul-africano.

“Enquanto você tenta colonizar Marte – a Rússia tenta ocupar a Ucrânia. Pedimos que você nos forneça estações Starlink.”

O sistema de conexão com a internet via satélite foi usado recentemente em Tonga. A erupção de um vulcão em janeiro deixou vilarejos remotos isolados e sem comunicação.