ESPECIAL: Na Braskem, a anatomia e as consequências de um desastre

Do plástico verde ao afundamento em Maceió, o buraco da petroquímica era mais embaixo

ESPECIAL: Na Braskem, a anatomia e as consequências de um desastre
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Controlada por Odebrecht e Petrobras, protagonistas da Lava-Jato, a Braskem ainda estava lambendo as feridas dos esquemas de corrupção, quando de novo perdeu o chão. O afundamento do solo em quatro bairros residenciais de Maceió, numa área em que a companhia minerava sal-gema, somou às preocupações de governança outras sociais e ambientais, numa espécie de ‘jogo dos sete erros’ ESG. 

Em dois anos, a petroquímica foi de referência em sustentabilidade, com direito a reconhecimento em premiações da ONU e participação no índice de sustentabilidade da B3, o ISE, a perdas bilionárias por um risco que não estava no seu radar — gerado por uma operação que responde por menos de 5% das receitas.

É um caso de livro-texto de como riscos ambientais e sociais não dimensionados podem afetar financeiramente e estrategicamente um negócio. 

A conta já está salgada. No começo do mês, a Braskem elevou para R$ 5 bilhões o valor reservado para bancar os custos para indenizar 6,4 mil famílias cujas casas começaram a ruir e estão sob risco de desabamento por causa da instabilidade do solo. 

Os investidores se perguntam qual o tamanho do buraco. Em janeiro, a provisão era de R$ 2,7 bilhões, valor que subiu para R$ 3,4 bilhões na divulgação do balanço do quarto trimestre, e agora voltou a escalar. 

O desastre teve efeito dominó. 

Foi um dos motivos para que a holandesa LyondellBasel desistisse de comprar o controle da Braskem em junho do ano passado e as dúvidas quanto ao tamanho do passivo ajudaram a abater o presidente da companhia, Fernando Musa, que deixou a empresa em dezembro. 

Além disso, já se reflete no custo de captação da companhia.

A Braskem levantou US$ 600 milhões na semana passada, numa operação híbrida, que mistura características de dívida com ações. Com prazo atípico de 60,5 anos, a emissão saiu a 8,5% ao ano, acima de outras operações da empresa.

A incerteza influenciou o custo. 

“A primeira pergunta do investidor é: tem mais alguma coisa? Eles querem saber se o passivo está conhecido”, diz Pedro Freitas, vice-presidente de finanças e de relações com investidores da Braskem. “A gente enfatizou que o que provisionamos é 100% do passivo conhecido. Porque ainda tem a ação ambiental em andamento e porque pode ser necessário incluir outra área.”

Ontem o BTG Pactual retomou a cobertura da petroquímica e estimou que a companhia pode ter que provisionar outro R$ 1 bilhão caso famílias residentes em áreas ainda consideradas de menor risco sejam incluídas no acordo.

Em meio a um ciclo de baixa das resinas petroquímicas e a demanda fraca pela pandemia, a Braskem vem passando por uma espécie de inferno astral. 

Parte do custo mais alto é pelo perfil da operação — um papel subordinado a outras dívidas e que dá alguns direitos adicionais à Braskem, como suspender o pagamento de juros incorporando-o ao principal, mais à frente, sem a declaração de default. 

Mas o fato de a companhia ter recorrido a esse tipo de emissão também está ligado, de alguma forma, com as provisões. No fim do ano, as empresas de classificação de risco colocaram a nota de crédito da companhia em observação negativa — e no começo de julho a rebaixaram, retirando seu grau de investimento. 

“Essas contingências adicionais de Alagoas foram decisivas para o rebaixamento”, diz o analista da S&P Felipe Speranzini, acrescentando que o corte reflete ainda os efeitos da covid-19.

Na prática, a Braskem recorreu a esse tipo de dívida mais cara porque quer reduzir sua alavancagem e tentar voltar para o grau de investimento. Nesse tipo de operação, as agências de classificação de risco consideram apenas metade do valor da operação como dívida e o restante como ações. 

Os recursos serão usados para o pagamento de dívidas, mas ao contrário de uma operação de troca de passivos comum, nesse caso a alavancagem deve cair. Hoje, a relação entre dívida líquida e ebitda é de 5,8 vezes, enquanto as agências de risco apontam que ficariam mais confortáveis com um patamar mais próximo das 3 vezes. 

“Qualquer provisão adicional pode transformar a desalavancagem da companhia numa preocupação de prazo ainda mais longo”, escreveram os analistas do BTG.

Há dez dias o escritório de advocacia americano Pomerantz anunciou que iniciou uma investigação para uma potencial ação coletiva contra a Braskem, de investidores que se sentiram prejudicados pela queda das ações decorrente das provisões. O Pomerantz é o mesmo escritório que moveu ações contra Petrobras e Vale.

Mais do que aumentar o custo da dívida, a catástrofe fez com que a Braskem perdesse de vez acesso um pool cada vez mais relevante de investidores — que já se ressentiam dos riscos da Lava-Jato. Três gestores de fundos com políticas ESG que preferiram não ser identificados disseram ter tirado a companhia de seu radar de investimento.

“A Braskem é o high yield do ESG”, diz um gestor de fundos de crédito local. 

O buraco era mais embaixo 

Até 2018, o negócio de sal-gema nunca chamou muita atenção porque era relativamente pequeno dentro do grupo. A matéria-prima é usada para fabricação de PVC, que representa menos de 5% dos resultados da companhia. 

Era a única atividade de mineração da petroquímica e os riscos associados a ela não estavam bem mapeados, dizem analistas. 

“Este risco [do sal-gema] era um assunto que não constava no formulário de referência da companhia”, diz Bruno Youssif, diretor de operações da Resultante, especializada em análise ESG. Mesmo a questão de riscos associados a impactos sobre comunidades era tratada de maneira tímida pela empresa.

A tese da companhia era que as cavernas subterrâneas que a atividade de mineração deixava para trás eram muito profundas e que as diversas camadas de solo acima dela eram suficientes para sustentar a superfície. 

“O que aconteceu realmente não estava dentro do cenário de gestão de risco da empresa”, diz um executivo com conhecimento do assunto.

As minas de sal-gema eram operadas há 40 anos, a princípio numa região afastada de Maceió, mas que foi engolida pela cidade conforme ela cresceu. A operação da empresa Salgema, depois Trikem, foi fundida na formação da Braskem, em 2002. 

Os depósitos de sal estão localizados a mil metros abaixo da superfície e para extraí-lo eram feitos dois buracos no chão. Injetava-se água em um deles e a salmoura saía pelo segundo. O líquido, então, era transportado por um duto até a fábrica de PVC, erguida a cerca de cinco quilômetros da mina. 

Depois de extraído todo o sal, o buraco ficava cheio de água e a empresa partia para o próximo. 

Em 40 anos, foram abertos 35 poços. Quatro estavam em operação quando enormes rachaduras começaram a aparecer nas casas do bairro de Pinheiro, inicialmente, e posteriormente também de Mutange, Bebedouro e Bom Parto. 

Em fevereiro de 2018, houve uma temporada de chuvas, seguida de um tremor de terra e, na sequência, as fissuras surgiram. Em março, um novo tremor de 2,4 graus na escala Richter fez as rachaduras aumentarem e se espalharem, levando às primeiras suspeitas de que o fenômeno poderia ter relação com a atividade da Braskem. 

Depois de mais de um ano de averiguação, em maio de 2019 o Serviço Geológico do Brasil, ou CPRM, uma empresa estatal, foi taxativo ao afirmar que a extração de sal-gema era a responsável pelas crateras no asfalto e rachaduras nas paredes e muros das casas. Segundo o laudo, ao menos duas das cavidades deixadas pela mineradora estavam ruindo, fazendo o solo ceder, com consequências trágicas na superfície.

A companhia rechaça essa conclusão e contratou outros pesquisadores para conduzir trabalhos paralelos. “O que está acontecendo na região é um fenômeno novo e complexo. O Serviço Geológico do Brasil aponta vários fatores e ainda há outros estudos em curso de institutos nacionais e internacionais”, afirmou em nota ao Reset.

A mina foi fechada em novembro do ano passado e o acordo para indenizar as famílias foi assinado em janeiro deste ano, quase dois anos depois do início dos problemas. Em seis meses, foram fechadas propostas de compensação financeira com 721 famílias.

“A Braskem acredita que a segurança das pessoas deve vir em primeiro lugar e, por conta de tudo isso, se empenhou em fazer um acordo amplo com os entes públicos para começar a desocupação das áreas de risco”, completa a nota, ressaltando que “as obrigações assumidas não significam o reconhecimento de responsabilidade da Braskem sobre a ocorrência de rachaduras nos bairros.” 

 A inércia da resposta

“Um pecado da Braskem é que o episódio lembra muito o de Mariana, em que a primeira reação da empresa foi de negação”, diz Cristóvão Alves, analista-chefe da Sitawi, casa especializada em ESG. 

Um gestor de renda variável que acompanha de perto a companhia tem a mesma avaliação. “No começo, a companhia tratou o assunto com bem menos seriedade do que merecia e minimizou o problema por meses na comunicação com o mercado.”

O acordo para indenizar as famílias, diz esse gestor, só saiu depois que a Petrobras passou a pressionar a Braskem por causa da condução do caso, levando à queda do então CEO Fernando Musa, em dezembro de 2019.

Um executivo que acompanhou de perto a reação da empresa diz que internamente havia a expectativa de que a venda do controle da Braskem para a holandesa LyondellBasel resolveria o problema. 

A oferta inicial da holandesa pelo controle da companhia foi feita em maio de 2018, justamente quando as rachaduras começavam a se espalhar pelas casas de Maceió. 

Se o controle fosse vendido, o problema iria junto. Mas a Lyondell acabou desistindo, em junho de 2019, em grande medida por causa do tamanho do buraco da atividade de sal-gema.

“Hoje a empresa está caminhando numa direção que faz mais sentido, saindo da negação para um acordo relevante. Mas não sei qual será a conta final”, diz o gestor de ações.

Alves, da Sitawi, opina que a demora maximizou as perdas financeiras para a própria empresa. “Os custos poderiam ter sido menores se ela tivesse fechado acordos com as famílias antes.”

Bruno Youssif, da Resultante, até concorda que a empresa demorou a responder inicialmente, mas avalia que depois foi transparente com o mercado, não foi omissa nas provisões e nem com as equipes no território afetado.

Ainda assim, o rating ESG da empresa é de pouco mais de 50 pontos, numa escala de zero a 100 utilizada pela Resultante. “Ela está no terceiro quartil, longe de ser bem avaliada.”

Do céu ao inferno

“A Braskem era a empresa do plástico verde, o que aconteceu em Maceió mudou muito a imagem”, diz Cristóvão Alves. 

Como fabricante de um produto cada vez mais em xeque diante do alarmante nível de poluição do planeta, o plástico, a Braskem procurou se posicionar como uma empresa sustentável desde a sua formação, em 2002. 

A lista de políticas voltadas para reduzir seu impacto ambiental negativo era extensa: desenvolvimento da tecnologia de plástico verde, políticas de reciclagem, eficiência hídrica e estímulo à economia circular, para citar algumas. 

O posicionamento levou a empresa a ser reconhecida como uma das líderes em desenvolvimento sustentável pelo Pacto Global da ONU por seis anos consecutivos — a última vez delas em novembro do ano passado. A Braskem também integra a carteira do índice de sustentabilidade da B3, o ISE, desde a sua criação, 15 anos atrás. 

Youssif opina ainda que, assim como Vale foi excluída do índice de sustentabilidade da B3 após o desastre de Brumadinho, o mesmo deveria ter acontecido com Braskem. 

A reportagem perguntou à B3 se a exclusão chegou a ser discutida e, em caso afirmativo, o que teria levado à decisão de manter a companhia no ISE.

Em resposta, a bolsa encaminhou uma nota em que afirma que após a listagem de uma companhia no índice, o conselho do ISE acompanha as informações e notícias sobre empresas da carteira, monitorando compromissos assumidos e implementados. 

“Esse acompanhamento tem por objetivo a implementação de um processo estruturado de diálogo com as empresas para esclarecimento de questões críticas de sua atuação nas dimensões social, ambiental, econômico-financeira e de governança corporativa que tenham sido veiculadas na grande imprensa.”

O Pacto Global encaminhou nota dizendo que a Rede Brasil, “ao tomar conhecimento [do caso de Alagoas], acionou o seu Comitê de Integridade e o Conselho de Administração, que decidiram manter o engajamento local da empresa mediante avaliação periódica das medidas que estão sendo tomadas.”