De comércio nos rincões a fintechs badaladas, Celcoin acelera inclusão financeira

Startup acaba de captar R$ 23 milhões em rodada liderada pela gestora de impacto Vox Capital e acompanhada pelo boostLAB do BTG

De comércio nos rincões a fintechs badaladas, Celcoin acelera inclusão financeira
A A
A A

O que o pequeno comerciante Helton Ferreira, de um bairro na periferia de Fortaleza, tem em comum com as fintechs sensação como Nubank e Stone?

Todos estão plugados ao sistema da Celcoin.

A startup, criada em 2016 por Marcelo França e Adriano Meirinho, desenvolveu uma plataforma na nuvem que permite o pagamento de contas de água, luz, telefone e tributos. 

Ao se conectar ao seu sistema, o cliente automaticamente tem acesso a prefeituras, governos e empresas de serviços básicos, operadoras de celular e até à provedora de streaming Netflix e à loja de aplicativos GooglePlay. Pode parecer algo trivial, mas trata-se de uma rede de mais de mil convênios trabalhosamente construída e interligada pela Celcoin.

O sistema acabou sendo útil para dois mundos. 

Por um lado, cerca de 33 mil pequenos comerciantes aumentam sua renda oferecendo o serviço de pagamento de contas à população desbancarizada nos rincões do país, poupando a visita ao banco ou à casa lotérica. Na prática, atuam como correspondentes bancários, sem estarem ligados a um banco. 

Já 120 fintechs se plugam à Celcoin por meio de uma API, espécie de ponte que conecta as plataformas online ao sistema de pagamentos de contas. 

Com um crescimento exponencial em meio à crescente digitalização com a pandemia, a startup acaba de fechar um aporte, de R$ 23 milhões, liderado pela gestora de impacto Vox Capital, que colocou R$ 14 milhões, e foi acompanhada pelo boostLAB, hub de aceleração de startups de tecnologia do BTG Pactual. 

A Vox é sócia da Celcoin desde o começo de 2019, quando aportou R$ 6 milhões. A empresa faz parte do seu fundo II, de R$ 50 milhões. 

Meia volta volver

A Celcoin é um daqueles casos em que o mercado encontrou a empresa e não o contrário. 

Quando idealizaram o aplicativo, os fundadores miraram a pessoa física: queriam fazer uma plataforma onde os desbancarizados pudessem pagar diretamente suas contas. O número de downloads deixava a desejar, mas um comportamento chamou atenção. Alguns usuários, especialmente no Nordeste, tinham um volume de pagamento de contas altíssimo. 

Os sócios pegaram um avião e foram conferir in loco. Para a completa surpresa, descobriram que alguns pequenos comerciantes estavam usando o aplicativo pessoal para oferecer o serviço de pagamento de contas para a clientela do bairro — uma forma de atrair clientes e eventualmente até ganhar uma graninha extra. 

Não tiveram dúvida: “Rapidamente mudamos a nossa comunicação e começamos a oferecer incentivos a esses comerciantes, com divisão de receita, e tivemos uma explosão de volume”, diz o CEO, Marcelo França. 

A tecnologia 

O sistema da Celcoin funciona num esquema pré-pago. Tanto o agente quanto a fintech precisam depositar um valor na conta de pagamentos que abre na Celcoin. Cada vez que um cliente na ponta paga um boleto ou recarrega um celular, o valor é debitado dessa conta central, que precisa ser constantemente reabastecida.

A receita vem da companhia de água, luz ou telefonia, que remunera a Celcoin pelo recebimento dos pagamentos.

A pandemia do coronavírus acelerou a curva de crescimento da empresa de forma exponencial, conforme a vida migrou para o digital. No caso dos agentes, a demanda explodiu porque as pessoas passaram a evitar a aglomeração nas lotéricas e descobriram que era possível pagar as contas nos mercadinhos e farmácias de bairro, que permaneceram abertos por serem serviços essenciais. 

Enquanto o número de agentes cresceu 50% no ano até agora, o de fintechs clientes dobrou.

Se em janeiro a Celcoin processava R$ 250 milhões por mês em pagamento, em setembro a empresa bateu em R$ 1,2 bilhão. Cerca de 70% do volume é originado pelas fintechs e bancos e 30% pelos agentes.

O faturamento anualizado da empresa bateu em R$ 75 milhões em setembro, mas deve fechar 2020 acima disso, já que nos meses considerados fracos tem crescido a uma taxa de 10%.

“Queremos nos posicionar cada vez mais como um provedor de serviços financeiros, com uma plataforma aberta e completa”, diz Marcelo França.

Impacto, teoria e prática

Para a Vox Capital, o impacto social gerado pela Celcoin não poderia ser mais claro. Basta conhecer a realidade do Brasil profundo. 

“Entre 60% e 70% dos boletos no Brasil ainda são pagos em dinheiro, na boca do caixa. Apenas 800 municípios, num total de 5,5 mil, têm caixas eletrônicos fora das agências bancárias. Ou seja, o brasileiro pega ônibus e gasta dinheiro, para pegar filas e pagar suas contas”, diz Daniel Izzo, cofundador e CEO da Vox. 

“Tanto no aplicativo quando na API, a Celcoin está ajudando a aumentar a disponibilidade de serviços financeiros para a população. É um efeito de desconcentração bancária e inclusão financeira.”

Além disso, no caso dos microempreendedores que se tornam agentes da Celcoin, existe uma geração de receita adicional. “São R$ 150 a R$ 200 por mês de receita, em média, só usando o celular”, diz Izzo. 

Em alguns casos, a Celcoin vira a principal fonte de renda. O comerciante Helton Ferreira, que citamos no começo da reportagem, montou uma loja apenas para o recebimento de contas na periferia de Fortaleza. Num vídeo produzido pela Celcoin no começo de 2019 e disponível no YouTube, ele conta que a sua ‘HF Serviços Financeiros’ processa 6 mil pagamentos por mês.

Para ajudar a medir o impacto da Celcoin, a Vox fez uma parceria com o Insper. Num dos estudos, conduzido pelo doutorando Leandro Nardi, foram pesquisados cinco municípios do Nordeste do país com um correspondente Celcoin e outros cinco, de perfil sócio-econômico semelhante, sem um correspondente.

Depois de entrevistar 50 pessoas, o estudo indicou que nas cidades com Celcoin, em uma semana, as pessoas entrevistadas gastaram 11 minutos a menos e R$ 4 reais a menos — uma passagem de ônibus — para pagar suas contas. Embora sem evidência causal, os resultados sugerem que a presença da empresa facilita e barateia o pagamento de contas.

Hoje a Celcoin é a investida de maior nota no ‘impactômetro’ da Vox, entre nove empresas nos portfólios de seus dois fundos de venture capital.

Próximos passos

Com o dinheiro que acaba de captar, a Celcoin pretende reforçar a equipe, que já saltou de 55 para 93 pessoas em 2020, e cumprir os pré-requisitos regulatórios para obter a licença de instituição de pagamento junto ao Banco Central.

A companhia quer ainda ampliar a oferta de serviços para além do pagamento de contas e recarga de celular. A próxima fronteira é o débito automático de contas, algo de que os clientes de bancos digitais sentem bastante falta. 

“Queremos atuar junto às fintechs para ajudá-las a se tornar a primeira conta dos clientes. O primeiro banco consegue ser dez vezes mais rentável que o segundo”, diz Marcelo França. “Para isso, estamos investindo na criação de uma nova geração de APIs para permitir que as fintechs possam criar experiências inovadoras.”

Nesse ponto, o BTG Pactual chega para tentar dar robustez e consistência à estratégia. De 44 startups que já passaram pela aceleração do boostLAB, a Celcoin é a sexta a receber um cheque.

“Nós enxergamos a oportunidade de a Celcoin oferecer a infraestrutura completa para fintechs e bancos desafiantes para competir com os grandes bancos”, diz Frederico Pompeu, sócio do BTG responsável pelo boostLAB. O próprio BTG Pactual Digital e o Banco Pan já estão plugados à Celcoin.

“Além do dinheiro, trazemos expertise bancária e de serviços financeiros, damos acesso às melhores práticas regulatórias e conseguimos ajudar a abrir diversas portas”, diz Pompeu.

Oceano azul

Atualmente, transações de 7 milhões de pessoas passam pela infraestrutura da Celcoin, o que representa 1,3% das contas de consumo do país. “Tem um espaço imenso ainda para crescer”, diz França.

No mercado, há quem aposte que a Celcoin é candidata a ser o primeiro unicórnio de impacto do país. Marcelo França prefere manter os pés no chão. “Nosso desafio é gerar valor para toda essa cadeia, viabilizar projetos de bancos digitais e continuar achando o caminho do crescimento. Ser ou não unicórnio é muito mais uma consequência.”

Entre os desafios adiante estão a chegada do Pix, o novo sistema de pagamento instantâneo criado pelo Banco Central, e o avanço do open banking.

No caso do Pix, Marcelo França diz se tratar de uma ‘oportunidade imensa’. “Cada agente nosso terá um Pix para receber pagamentos de qualquer produto dentro da loja dele. O dinheiro já cai na conta e ele pode oferecer o serviço de pagamento de boletos.”

Daniel Izzo, da Vox, adiciona cautela. “A empresa está bem posicionada, mas os próximos seis meses serão de navegar algumas transições no mercado financeiro e ver o que acontece.”