Crédito verde: CRA de R$ 63 milhões testa mercado para quem 'produz certo'

Crédito verde: CRA de R$ 63 milhões testa mercado para quem 'produz certo'
A A
A A

Uma emissão de um título de dívida do agronegócio de R$ 63 milhões fechada na sexta-feira testou as águas para o que pretende ser um programa mais ambicioso para fazer fluir dinheiro de investidores locais e estrangeiros diretamente para produtores rurais com boas práticas socioambientais.

Na ponta tomadora do Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA), algo ainda pouco usual: em vez de um único grupo do agronegócio, sete produtores de grãos e algodão de médio e grande porte do Cerrado, com um total de 14 fazendas, receberão o crédito. 

O comprador foi um único fundo com bastante apetite por ativos sustentáveis, cujo nome não foi revelado. 

“Os produtores brasileiros que fazem a coisa certa têm uma oportunidade enorme para navegar no mercado de capitais e ter acesso a taxas diferenciadas em relação ao que pagam normalmente”, diz Aline Locks, CEO da empresa Produzindo Certo, que ajudou a montar a operação.

Para ter acesso ao dinheiro da emissão, os sete produtores se comprometeram a cumprir uma série de metas sociais e ambientais em suas propriedades. A evolução será monitorada ao longo da duração do CRA e o descumprimento de algumas delas pode levar à exclusão do produtor, além do pagamento de uma multa equivalente a 15% do valor do crédito.

Alguns anos atrás, a Produzindo Certo e a securitizadora Gaia, que se uniram para a operação, tentaram ensaiar uma emissão semelhante, mas a oferta não encontrou eco no mercado. “Agora, com os ‘green bonds’ em alta, veio a calhar”, diz Locks.

A ideia é que esta primeira operação seja replicada com mais escala, dentro de um programa que está sendo desenhado pelos parceiros. “Temos uma necessidade de R$ 6 bilhões em crédito das fazendas que estão na nossa plataforma”, diz Locks.

O título tem vencimento em junho de 2025 e sua taxa é de 8% ao ano na cota sênior e 11% na subordinada — mas pode passar por uma repactuação ano a ano, conforme condições de mercado. 

O juro não chega a ser um presente em tempos de Selic a 2%, mas, no crédito rural tradicional, o acréscimo de custos como seguro, cartório e outros frequentemente faz com que a taxa efetiva paga pelo produtor ultrapasse os 10% ao ano e, em alguns casos, chegue a quase 15%.

Aqui, apenas o seguro contra riscos climáticos, com custo médio de 1% da operação, não está embutido na taxa. Outra vantagem é que o CRA dispensa garantias reais.

Jogada triangulada

A Produzindo Certo, que é especializada no monitoramento de práticas socioambientais no campo e na certificação de cadeias de fornecimento, reuniu os produtores, analisou as práticas, estabeleceu as metas e checará o seu cumprimento.

A fintech Traive, especializada no setor agro e terceira parceira da operação, fez a análise do risco de crédito, enquanto a securitizadora Gaia empacotou tudo para levar a operação ao mercado de capitais.

“Num mundo em que todo mundo fala de ESG, achamos importante fazer uma operação que tem mensuração, metas e penalidades para quem não cumprir, pra gente conseguir fazer essa melhoria contínua.”, diz João Paulo Pacifico, CEO da Gaia.

Embora tenha sido batizado de Verde.Tech, o CRA ainda não foi certificado como “verde” por uma consultoria independente. Mas a ideia ainda é buscar o selo.

Mesmo com as metas ambientais, o dinheiro não é carimbado. Poderá ser usado tanto para custeio da safra quanto para investir em melhorias sociais e ambientais, como a regeneração de uma área de preservação de vegetação nativa ou a adequação de um depósito de agroquímicos.

O rastreio no core

De certa forma, a inteligência da Produzindo Certo é o coração da operação.

A empresa nasceu como uma ONG chamada Aliança da Terra, em 2004, fundada por produtores rurais, com o objetivo de desmistificar a sustentabilidade e levar apoio técnico ao produtor rural.

“Tem produtor ruim? Tem. Mas muitas vezes a informação é que não chega na ponta. A ideia foi levar a assistência técnica, comunicar o que existe de bom no agro e conectar os produtores preocupados com questões ambientais e sociais às empresas que estão buscando esses fornecedores”, diz Aline Locks.

No ano passado, a ONG tomou a decisão de se converter em empresa, para andar com as próprias pernas e amplificar o alcance.

O trabalho funciona assim: sempre que uma nova fazenda chega à plataforma, uma equipe de especialistas faz uma visita para tirar um retrato da situação socioambiental e produtiva. Checa pontos como o uso da água, o uso de defensivos agrícolas, a condição de trabalho dos funcionários, a situação das áreas de preservação ambiental, entre outros.

Com o diagnóstico pronto, é gerado um score socioambiental, são identificados os aspectos a serem melhorados e criado um plano de ação detalhado. “Indicamos como e quando agir. Ajudamos a estabelecer prioridades e damos assistência técnica para o processo”, diz Locks.

O fazendeiro assina, então, um compromisso voluntário para atingir as metas e a propriedade passa a ser monitorada. Parte desse monitoramento acontece de forma remota, com uso de tecnologias, e parte de forma presencial.

Fazendas que não evoluem no prazo de dois anos são excluídas da plataforma.

Hoje, a empresa tem 1600 propriedades de médio e grande porte em sua plataforma, o equivalente a 6 milhões de hectares. A maior parte está no Centro-Oeste brasileiro, nos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, embora a atuação se estenda a 15 Estados no total. 

Agora o Rio Grande do Sul começa a entrar no radar, agregando 5.000 propriedades menores ao portfólio.

Fazendas que são referência de agricultura sustentável, como a Roncador, fazem parte da plataforma.

A Produzindo Certo está por trás de alguns programas sustentáveis do varejo e da indústria de alimentos.

É ela, por exemplo, que faz a certificação de todos os pecuaristas que fornecem carne da espécie Rubia Gallega vendida nos supermercados do Grupo Pão de Açúcar. É ela também que atesta que a soja usada na fabricação da maionese Helmann’s é produzida de forma sustentável e não saiu de área desmatada.

O desafio dos indiretos

No ramo há tanto tempo, Locks admite que ainda há limites ao monitoramento completo da cadeia de fornecimento, principalmente dos fornecedores indiretos. 

Em casos específicos como o Rubia Gallega, o rastreio é possível, explica, porque as fazendas fornecedoras fazem o ciclo completo de cria, engorda, abate e chegam até a ponta do frigorífico. “Existe a certeza de que nada veio de áreas desmatadas.”

Mas no caso das fazendas que não oferecem ciclo completo — a maioria dos casos — esse controle animal a animal ainda é impossível. Hoje, uma das medidas é obrigar o fornecedor a informar de quem foi comprado o bezerro ou o boi magro para que a fazenda de origem possa ser verificada e, se possível, trazida para a plataforma.

Nos grãos, os limites são de outra natureza. Não há como assegurar, por exemplo, que a soja que virou maionese é exatamente aquela que saiu da fazenda certificada.

O rastreio é feito por um sistema conhecido como “mass balance”. 

Ou seja, é possível verificar que a soja certificada e adquirida pela indústria de alimentos entrou em determinada trading no volume certo. Mas ali os grãos são misturados nos silos e o rastreio se perde.

 “O desafio de rastrear a cadeia total, especialmente a indireta, é gigantesco. Estamos o tempo todo tentando criar soluções novas.”

LEIA MAIS

Como um fundo de R$ 370 milhões quer transformar solo fértil em herói da crise climática no Brasil