Como um fundo de R$ 370 milhões quer transformar solo fértil em herói da crise climática no Brasil

Com gestão da JGP, fundo traz dinheiro de estrangeiro para financiar a integração lavoura-pecuária-floresta e, com antecipação de recebíveis, faz impacto chegar na ponta da cadeia

paisagem com floresta e um corredor para pastagem de gado
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Em 90 minutos, o documentário ‘Kiss the Ground’, disponível na Netflix, recorre a estrelas do calibre de Gisele Bündchen para mostrar como o sistema agrícola que integra lavoura, pecuária e floresta para regenerar o solo também aumenta a fixação de gás carbônico no subsolo, preserva espécies, restabelece a oferta de água e, de quebra, combate a mudança climática.

Moral da história: o solo, quando fértil, é o herói.

A narrativa deixa uma mensagem de esperança e, ao mesmo tempo, uma pergunta inevitável diante de algo que resta óbvio: por que o mundo todo não produz alimentos dessa forma?

No Brasil, quem conhece o assunto em profundidade diz que faltam essencialmente duas coisas aos produtores, pulverizados pelo país: conhecimento e dinheiro para investir nessa transição.

Um fundo que acaba de ser constituído no Brasil montou uma estrutura engenhosa para entregar as duas coisas.

De forma simplificada: produtores que aderirem ao sistema de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF) serão certificados e terão acesso a crédito barato para compra de insumos. O dinheiro virá de investidores estrangeiros engajados com a questão climática.

O fundo foi idealizado pela Rede ILPF, formada para acelerar a adoção da integração no Brasil, e reúne Bradesco, Ceptis, Cocamar, John Deere, Soesp, Syngenta e Embrapa.

O fundo começa com um investimento piloto de US$ 68 milhões em 2021, mas é bem mais ambicioso, com potencial de chegar a US$ 1,4 bilhão até 2026, segundo os organizadores. A ideia é buscar capital internacional orientado a projetos de impacto climático, e, com isso, ajudar a escalar um modelo de agricultura sustentável no país.

“Queremos ser uma porta de entrada de finanças verdes na agricultura brasileira”, diz José Pugas, vice-presidente da Rede ILPF e também sócio da Ceptis Agro.

Quatro letras, uma solução

A Rede ILPF desenvolveu o conceito do fundo, que foi batizado de Sustainable Agriculture Finance Facility, ou SAFF.

Ele nada mais é do que um FIDC, que vai comprar direitos creditórios como, por exemplo, recebíveis de revendedoras de insumos agropecuários que fizerem vendas para os produtores devidamente certificados. Ou seja, a revenda financia o produtor e desconta os recebíveis com o fundo.

 O FIDC será gerido pela carioca JGP, que já faz a gestão de fundos de ações ESG e agora estreia em fundos de crédito com pegada sustentável.

Como parte do SAFF, haverá ainda um segundo veículo para receber recursos filantrópicos. Esse dinheiro será usado para pagar a assistência técnica a ser dada pela Embrapa para aplicação das técnicas ILPF nas propriedades e a certificação necessária para torná-las aptas a receber o financiamento.

“Criamos o SAFF para que não seja um filho único, mas um modelo facilmente replicável. É um fundo ‘open source’”, diz Pugas. Três outros fundos semelhantes estão em discussão preliminar para financiar, por exemplo, biocombustíveis.

Uma opção bem menos complexa, diz ele, teria sido trazer o dinheiro dos investidores por meio da venda dos créditos de carbono gerados nas fazendas. “Mas acreditamos que políticas compensatórios (de emissões) não são mais suficientes se todo mundo continuar gerando externalidades negativas. Preferimos um mecanismo que gera crédito direto para o produtor e que aproxima o mercado financeiro do setor produtivo.”

O mecanismo amarra todas as pontas: presta assistência técnica, certifica as propriedades dando um selo de adequação ao ILPF e, por fim, financia os produtores que aderiram a um custo mais baixo.

E, para facilitar a prestação de contas aos investidores e eliminar o risco de fraudes, todos os elos da transação serão rastreáveis por meio de tecnologia de blockchain. “O produtor só conseguirá comprar produtos homologados. Não existe a possibilidade de pegar o dinheiro para comprar qualquer outra coisa”.

Hoje, muitos investidores se preocupam com o risco reputacional de aplicar em um projeto que se diz verde e depois serem surpreendidos com furos no processo. “Com toda a tecnologia disponível hoje, não se pode alegar ignorância em relação a más práticas”, avalia Pugas.

Impacto na ponta

“O grande diferencial desse fundo é fazer com que o capital efetivamente chegue aos projetos, com enorme impacto”, diz Alexandre Muller, gestor de renda fixa da JGP, responsável pela gestão do SAFF. “Hoje o produtor, especialmente o pequeno, usa técnicas que degradam o meio-ambiente por falta de assessoria técnica ou de recursos.”

A JGP foi escolhida como gestora por meio de um edital de contratação. “Esse fundo é exatamente o que queremos fazer na área de crédito ESG”, diz Muller, que vem se dedicando ao tema na asset carioca.

Muller avalia que a tecnologia desenvolvida de certificação digital dos produtores pela Ceptis Agro, chamada de TrustScore, é um grande diferencial.

“Usando mais de 120 critérios, a partir de fontes públicas de informação e imagens de satélite, entre outras coisas, a certificação consegue fugir de critérios autodeclarados pelos interessados no crédito”, diz ele.

O desafio principal na gestão será integrar os sistemas do fundo com os vários originadores dos recebíveis que serão comprados, ou seja, as revendas de insumos agrícolas. A gestora receberá 1,5% ao ano em taxa de administração. Outro 0,5% será pago ao Bradesco como taxa de custódia do fundo.

O fundo foi acelerado pelo Global Innovation Lab for Climate Finance (Lab), um programa de aceleração de investimentos em sustentabilidade gerenciado pelo Climate Policy Initiative e que reúne mais de 60 investidores estrangeiros, como o IFC. O Lab também está apoiando a captação do fundo.

São cinco linhas de financiamento: custeio, compra de animais vivos, compra de máquinas, correção de solo e manejo florestal. Os juros são os mesmos do Plano Safra, como o Programa Agricultura de Baixo Carbono (ABC) e o Moderfrota, e variam de 4,5% a 9,1%.

“Hoje menos de 0,1% de todos os investimentos em crédito no Brasil vem de subsídios para agricultura de baixo carbono. O volume está longe de ser suficiente para todos e a burocracia é paralisante”, diz Pugas. “Da mesma forma, ainda que tenhamos taxas de juros nominais próximas ao do Plano Safra, o custo efetivo de crédito é menor por não ter necessidades de reciprocidades e taxas adicionais como se teria em canais tradicionais de repasse do Plano Safra.”

E quanto maior a nota alcançada no TrustScore, menores serão as taxas. Se a nota melhora ao longo do tempo, o produtor tem redução da taxa e recebe o rebate em dinheiro na conta para gastar como quiser.

O fundo é aberto a produtores de qualquer porte, mas os organizadores dizem que os recursos serão mais competitivos para os médios.

“Acredito firmemente que o setor financeiro é o único capaz de construir uma visão inclusiva e regenerativa economicamente viável para o agronegócio sustentável no Brasil”, diz Pugas.

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