Como Pecém largou na frente na corrida pelo hidrogênio verde no Brasil

Porto cearense está em conversas avançadas com empresas que querem transformar o país em um grande exportador do combustível do futuro

Imagem área do porto do Pecém, no Ceará
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Duna Uribe, a diretora comercial do Porto do Pecém, no Ceará, sabia que seria requisitada no evento global que reuniu a nascente indústria do hidrogênio verde, em maio, em Roterdã, a cidade portuária holandesa. Mas o interesse do mundo no Brasil a surpreendeu.

“Fiquei impressionada”, disse Uribe uma semana depois de voltar da Holanda. “Grupos industriais, como siderúrgicas e montadoras, mas também traders que começam a enxergar o hidrogênio como uma nova commodity, todos querem saber mais.”

Com sol, vento abundantes e uma indústria de energias renováveis estabelecida, o Brasil é apontado como um dos potenciais líderes globais na produção de hidrogênio verde. Existem iniciativas espalhadas pelo país, mas o porto cearense está na dianteira.

O governo do Estado já firmou cerca de 20 memorandos de entendimento com empresas que participarão das diversas etapas da produção de hidrogênio. Só o porto, diz Uribe, tem conversas avançadas com dez grupos interessados em produzir e embarcar o combustível.

Com a dupla urgência da descarbonização e da busca por novas fontes de energia na Europa por causa da guerra da Ucrânia, a criação de um mercado global de hidrogênio verde tornou-se prioridade para algumas das maiores economias do mundo.

E o porto de Pecém acredita estar largando bem posicionado nessa corrida – inclusive geograficamente.

Esquina do Atlântico

Instalado 50 km costa acima de Fortaleza, o porto oferece a rota mais curta entre o Brasil e os pontos onde deve ser consumido o hidrogênio produzido por aqui.

O complexo do Pecém está montando um hub em que as produtoras vão se instalar. A lógica é semelhante à das refinarias: compartilhar alguns itens de infraestrutura, como dutos e tanques para estocar o hidrogênio na forma de amônia verde, e estar perto do ponto de escoamento.

O modelo de negócios do porto inclui o arrendamento dos terrenos dentro de uma zona de processamento de exportações (ZPE), que oferece vantagens tributárias, e a cobrança pelo fornecimento de serviços portuários.

Pecém também oferece um contato europeu importante. O Porto de Roterdã,  que está se posicionando como a principal porta de entrada do hidrogênio no continente, é dono de 30% do capital do porto cearense.

A ideia, segundo Uribe, é criar um corredor de hidrogênio entre o Ceará e a Holanda. “Roterdã não é um porto holandês, é um porto europeu.”

Ela ilustra essa afirmação com números. A Holanda tem 16 milhões de habitantes, e o porto movimenta 460 milhões de toneladas anuais. O Brasil tem 210 milhões de habitantes, e pelo Porto de Santos passam 110 milhões de toneladas de produtos.

A demanda está se materializando, e já se sabe onde serão feitas as entregas. Mas e o produto?

“O plano é ter produção comercial no final de 2025, começo de 2026”, afirma Uribe. Neste momento, estão sendo definidas as áreas que serão ocupadas pelas produtoras de hidrogênio.

A executiva afirma ser cedo para começar a falar em início de obras, pois os projetos ainda dependem de fatores que fogem ao controle do porto.

Um dos mais importantes é o fornecimento de energia renovável. A exportação de hidrogênio verde é, na prática, a exportação de energia solar ou eólica. As plantas que vão fornecer a energia para os projetos ficam fora do complexo portuário.

Os projetos incluem a provisão de eletricidade limpa, mas é necessário desenvolver novas usinas – os compradores no exterior exigem que a energia tenha adicionalidade, ou seja, que não esteja competindo com a que é utilizada no país.

Usando eletricidade verde, equipamentos chamados eletrolisadores separam os átomos de oxigênio e hidrogênio da água. Como o nível de emissões de CO2 é muito baixo, o produto final recebe o nome de hidrogênio verde.

A União Europeia está definindo padrões para certificar o hidrogênio como renovável, que essencialmente exigirão um limite máximo de emissões por quilo na produção de hidrogênio (ainda não é possível evitar aquelas relacionadas ao transporte, por exemplo).

Para Uribe, trata-se de um desenvolvimento positivo, que pode trazer vantagens para o Brasil. “Temos muito a ganhar, e especificamente no Nordeste, com solar e eólica”, afirma ela.

As duas fontes têm ciclos complementares, o que significa que os eletrolisadores podem operar por mais tempo e de forma mais eficiente.

Outra diferença em relação a outras regiões é o fato de a infraestrutura já existir. Além do parque instalado de renováveis, “já temos o porto e a ZPE. Em outros lugares, por enquanto essas coisas só existem no papel”, afirma Uribe.

Ela menciona especificamente o Chile, que tem alguns dos maiores potenciais do mundo em energia solar (deserto do Atacama) e eólica (Estreito de Magalhães) – mas ainda depende da queima de combustíveis fósseis para gerar boa parte de sua eletricidade.

Pilotando

Por enquanto, a única iniciativa concreta em andamento para produção de hidrogênio verde no Porto do Pecém não tem como objetivo as exportações.

A empresa portuguesa de energia EDP deve colocar em funcionamento um eletrolisador de pequeno porte até o final deste ano.

“O objetivo é substituir combustíveis fósseis usados para gerar eletricidade para alguns serviços auxiliares do porto”, diz Ana Quelhas, responsável pelas iniciativas globais de hidrogênio da companhia.

A EDP opera uma grande usina termelétrica movida a carvão no complexo do Pecém, e o projeto piloto faz parte do compromisso de abandonar esse combustível fóssil até 2025 (e gerar somente renováveis em 2030).

Além disso, com a expectativa de grande demanda por parte de clientes europeus, a empresa também estuda se instalar no polo exportador.

Ovos e galinhas

A tecnologia para quebrar as moléculas de água é dominada há mais de cem anos. Já se sabe que o hidrogênio será essencial para cortar emissões de setores em que a eletricidade não é uma solução viável, como siderurgia e transportes de longa distância.

Falta apenas uma parte importante da equação: contratos de venda assinados.

O custo de produção do hidrogênio verde ainda é de três a quatro vezes mais alto que o do hidrogênio tradicional, à base de gás natural. A expectativa é que o governo alemão anuncie as regras de um grande leilão para pagar esse prêmio inicial e, ao mesmo tempo, financiar o desenvolvimento da indústria, um programa chamado H2 Global.

Uribe acredita que o empurrão dos alemães vá ajudar, mas tudo indica que os primeiros negócios não vão demorar para acontecer. “Pense numa siderúrgica alemã. Ela vai ter de comprar hidrogênio. Eles já estão indo atrás. Japão e Coreia do Sul já estão começando a firmar contratos de compra. Está acontecendo.”

O investidor de um dos projetos no porto cearense compartilhou a mesma mensagem com o Reset. Com o impacto da guerra da Rússia, a amônia verde – composto que deve representar a primeira aplicação prática em grande escala do hidrogênio verde – já não está mais em discussão.

O projeto que ele representa pretende estrear produzindo cerca de 100 mil toneladas anuais de amônia verde no Ceará (além de outras iniciativas espalhadas pelo resto do mundo). “E acreditamos que ela já seja competitiva hoje.”

“Você vai deixar para trás a volatilidade do gás natural [matéria-prima usada hoje para produção de amônia] e vai depender somente de energia renovável”, afirma o investidor. “É um jogo completamente diferente.”