Os erros nos fundos sustentáveis da Anbima (e como acertar o rumo)

O objetivo é nobre, mas o resultado da primeira classificação de fundos sustentáveis brasileiros desenha um mapa errado para o investidor

Ilustração mostra um homem parado diante da entrada de um labirinto
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Recebi com entusiasmo, em 2021, a notícia de que a Anbima estava desenvolvendo uma norma de autorregulação para a classificação de fundos de investimento segundo critérios de sustentabilidade, que seria aplicada como uma camada adicional às classificações existentes sobre classe de ativos, estratégia, liquidez etc.

Fiquei empolgado no início de 2022 quando vi a norma publicada e sua clara inspiração e alinhamento com a SFDR (Sustainable Finance Disclosure Regulation), norma europeia análoga que representa o estado da arte para classificação e nomenclatura de fundos de investimento em temas de sustentabilidade e ESG.

Fiquei brevemente preocupado sobre a implementação de uma norma brasileira sem uma taxonomia de finanças sustentáveis, como tem a União Europeia, e pela definição ampla dos fundos que fazem integração ESG. A norma poderia ter usado subclassificações consagradas há mais de 30 anos, como filtros negativos e positivos, engajamento, best-in-class, integração ESG etc. 

Mas concluí que o texto era suficiente para diferenciar os fundos que receberiam o selo IS dos ESG e que detalhamentos em subclasses poderiam vir em um segundo momento. (Leia aqui como funciona o sistema de classificação da Anbima.)

A empolgação continuou ao observarmos várias gestoras com quem temos contato engajadas no enquadramento de seus fundos como IS ou ESG. Inclusive tivemos de frear a empolgação de algumas delas, explicando as diferenças entre IS e ESG e recomendando que buscassem o enquadramento correto, na maioria dos casos o ESG.

No início deste mês, mais entusiasmo ao ver a notícia no Reset sobre a primeira leva de fundos rotulados. Mas meu sensor de problema começou a soar ao olhar a estatística: 17 fundos IS e apenas 5 ESG. E, na fila de análise, outros potenciais 31 fundos IS e apenas 14 fundos ESG. A proporção me pareceu invertida. E a declaração do porta-voz da própria Anbima confirmava isso:

“Essa integração (ESG) se tornará cada vez mais default na indústria, enquanto os fundos com tese de investimento sustentável permanecerão como produtos de nicho, ou seja, existirão em menor quantidade, como já acontece em outros países”, afirma Cacá Takahashi, vice-presidente da ANBIMA.”

Acaso estatístico?

Ainda assim, poderíamos estar diante de uma casualidade estatística. Mas a sensação de perplexidade foi inevitável ao olhar a lista de fundos rotulados como IS na primeira leva.

Ainda que uns poucos potencialmente mereçam o rótulo IS, se considerarmos o texto da norma, a maioria é claramente fundo ESG: integram questões ESG em sua gestão, ao fazer, por exemplo:

– Gestão passiva (fundo espelho) ou ativa dentro do universo investível de um índice ESG amplo;

– Compra de ETFs que calibram seus portfólios conforme ratings ESG das empresas do índice de referência;

– Exclusão de alguns setores com externalidades negativas de seu universo investível;

– Gestão ativa que incorpora ratings ESG proprietários focados em risco.

Essas abordagens são documentadas em frameworks ou publicações de referência há mais de 40 anos, por entidades como US SIF e UK SIF, PRI, Global Sustainable Investment Alliance e mais recentemente até o CFA Institute. São implementações dos clássicos filtros negativos, filtros positivos, best-in-class e integração ESG, que o texto da norma da Anbima (e seu Guia ASG II) parecia enquadrar como ESG.

Mas não possuem a sustentabilidade como objetivo principal, intencional e mensurável, como é o caso de abordagens de investimento temático (por exemplo, energias renováveis ou água) e investimento de impacto (que têm como objetivo o impacto social ou ambiental positivo, ao lado da performance financeira) , que deveriam ser os verdadeiros fundos IS e seus análogos europeus do SFDR artigo 9.

O resultado da execução equivocada da norma é a criação de um mapa errado dos fundos sustentáveis no Brasil. Ter o mapa errado é pior para o investidor do que não ter mapa algum. E também é um banho de água fria para os verdadeiros fundos IS, que perdem sua diferenciação ao terem dezenas de pares com o mesmo rótulo.

Mas como uma norma com texto consistente, desenvolvida por uma instituição séria, pessoas competentes e bem-intencionadas, pode ter produzido resultados equivocados? 

Acertando o rumo

Formulo duas hipóteses, que são também a chave para correção de rota:

1. Melhorar a orientação ao mercado sobre o que constitui um “Objetivo de Investimento Sustentável” para fundos IS. Embora a norma busque não ser prescritiva sobre percentuais mínimos de investimento neste ou naquele ativo, a terminologia não pode ser ambígua. Se IS é uma coisa e ESG é outra, se o mero filtro de exclusão não é suficiente para IS (conforme o Guia ASG II da própria Anbima), então qual abordagem é potencialmente elegível a IS? (na interpretação deste escriba e de profissionais ESG experientes consultados, são as abordagens temáticas e de impacto).

2. Aumentar capacidade de supervisão. Na implementação de qualquer norma dentro de um determinado prazo, pode-se esperar uma concentração da atividade de supervisão perto do prazo final. Como vimos, foram dezenas de submissões de fundos IS e ESG, que provavelmente geraram milhares de documentos e evidências para análise junto ao corpo técnico da Anbima. Sem recursos humanos em escala e qualificação compatíveis, é difícil fazer supervisão de qualidade, fato agravado pela “novidade” do tema e ambiguidade do termo “Objetivo de Investimento Sustentável”.

Interessante notar que a norma de classificação de fundos traz dois conceitos que podemos transportar para esta correção de rota.

O primeiro é o Não Causar Dano (DNSH – Do No Significant Harm). Algum dano ao mercado já foi causado com essa primeira implementação equivocada e, a cada dia que passa, o dano vai se tornando menos reversível.

É preciso agir rápido: congelar a análise da próxima leva de fundos, convocar os fundos IS já validados e acertar a classificação. E garantir alinhamento interno e com o mercado na extensão da norma para os FIDCs (fundos de direitos creditórios), cuja consulta pública se encerrou em julho/2022, e para os FIPs (fundos de participação) e demais fundos de classes alternativas, que já estão no roadmap da associação.

O outro princípio é o de transparência. Ainda que a atribuição do IS tenha sido equivocada para muitos fundos, ela gerou informações públicas suficientes para que outros atores de mercado possam (re)fazer classificações conforme o espírito e texto da norma Anbima ou segundo critérios próprios, gerando mapas concorrentes.

Torço para que o princípio de Não Causar Dano prevaleça nesta mudança de rota: assim teremos um mapa correto, elaborado a partir de um processo de auto-regulação robusto, eficiente e de baixo custo transacional.