Na reta final da COP, o desafio de tirar do papel o mercado de carbono

A COP26, em Glasgow, aprovou as premissas básicas das trocas de reduções de emissões, agora falta resolver todas as questões técnicas para que aconteçam na prática

Emissões de CO2, responsáveis pelas mudanças climáticas, devem ser reguladas por mercado de carbono
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Muito se comemorou em Glasgow em 2021 a adoção das regras básicas sobre os instrumentos de mercado de carbono do artigo 6 do Acordo de Paris. Mas a verdade é que ainda falta muito trabalho para tirar do papel essas regras e implementar o que foi decidido.

A três dias do fim da COP27, uma maratona de reuniões têm acontecido para definir alguns itens prioritários dessa agenda e pavimentar o caminho para que as trocas de redução de emissões possam acontecer na prática no futuro.

Dentre os instrumentos de mercado de carbono, o artigo 6.2 regula as trocas entre países. Ele prevê que os países possam transferir seus resultados de redução de emissões (mitigação) entre si, criando uma unidade de negociação chamada Resultados de Mitigação Transferidos Internacionalmente (Internationally Transferred Mitigation Outcomes – “ITMOs”).

Isso significa que os países poderão fazer acordos bilaterais entre si para promover iniciativas conjuntas para reduzir as emissões ou remover os GEE num país, o que poderá então ajudar o outro a atingir sua NDC.

Outro instrumento de mercado é o artigo 6.4, que regula as trocas entre entes privados para cumprimento das metas nacionais de mitigação. Numa lógica semelhante ao Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) do Protocolo de Quioto, a ideia é certificar unidades de mitigação de GEE com base em atividades e metodologias que reduzem emissões em relação a uma linha de base de emissões projetadas. Tal como no MDL, as unidades geradas neste mecanismo podem ser utilizadas pelos países adquirentes para cumprir sua meta.

Na COP 26, foram adotadas algumas premissas básicas sobre o escopo desses instrumentos, e alguns princípios e conceitos fundamentais. O desafio agora é, a partir dessa orientação que foi dada, criar os fluxos de processos, procedimentos, modelos de documentos e infraestrutura que vão determinar como efetivamente esses “mercados” vão funcionar.

Em outras palavras, nesta nova fase de negociação do artigo 6, o foco é resolver as burocracias necessárias para que esses instrumentos possam começar a operar.

Só que essas burocracias não são nada simples de se resolver. Prova disso é que o primeiro texto de negociação que trouxe uma proposta para esse regramento tinha 59 páginas. Em 7 dias de negociação, o texto foi reduzido para 55 páginas, todas recheadas de questões técnicas, como interoperabilidade entre registros e formas de rastreamento dos créditos de carbono. Não é uma leitura muito agradável.

A discrepância entre países ricos e pobres também se torna evidente neste momento: discussões nesse nível de granularidade estão muito além da capacidade de países que têm pouca ou nenhuma experiência com mercados de carbono de qualquer natureza.

Além disso, a conversa gira em torno de definir modelos para os relatórios que os países vão apresentar para reportar os acordos bilaterais que estão realizando, as transferências de resultados de mitigação (ITMOs) e a contabilidade desses créditos no cumprimento da NDC.

Sempre que dois países fazem uma transação de ITMOs, isso precisa ser reportado e os devidos ajustes precisam ser feitos no orçamento de carbono de cada um – ou seja, no saldo de cumprimento da meta climática de cada um.

Mas não são apenas informações quantitativas que precisam ser prestadas: há uma longa lista de declarações e evidências sobre aspectos qualitativos dessa transação entre os países, como a demonstração de que os ITMOs foram transferidos com respeito a salvaguardas ambientais e sociais e que a transferência não vai prejudicar o cumprimento da NDC do país que originou os créditos. 

São declarações com repercussões sérias, e por isso há muita discussão sobre o nível de informação que deve ser prestado e como será feita a revisão dessas informações depois, especialmente para países com menos capacidade e experiência com esses tipos de relatos.

Para aumentar a complexidade da tarefa, em Glasgow se criou o que pode ser entendido como um sistema com dois “tracks”: de um lado, unidades que são autorizadas para fins de compliance com o Acordo de Paris e obrigações internacionais; e de outro, unidades que não recebem esta autorização, e portanto somente podem ser usadas para outras finalidades de mitigação fora do ambiente de compliance do Acordo de Paris (como mercados de carbono domésticos e voluntários).

Essas unidades, a rigor, não requerem que o país faça ajustes correspondentes; ou seja, não precisam ser descontadas do balanço de emissões de gases de efeito estufa do país (que é usado para demonstrar status de cumprimento da sua NDC). Mas os países podem optar por emitir essa autorização nesses casos também; e, caso o façam, deverão fazer esses ajustes correspondentes.

Dessa forma, há também no momento uma discussão sobre como vai funcionar esse processo de “autorização”, e em que medida as unidades que não são autorizadas estão sujeitas aos processos, procedimentos, infraestrutura e obrigações do Acordo de Paris.

Fora isso, outros processos importantes em discussão incluem a transição de projetos em andamento do MDL para o mecanismo do artigo 6.4 e o uso de Reduções Certificadas de Emissão (RCEs) para cumprimento das NDCs do Acordo de Paris (o que vale apenas para as NDCs que vão até o prazo de 2030); e também o processo para aplicação do percentual de repartição de benefícios que vai ser destinado ao Fundo de Adaptação e o processo para cancelamento de 2% das unidades geradas pelo mecanismo do artigo 6.4 para serem destinadas à “mitigação geral das emissões globais”.

Em paralelo a tudo isso, temos o Órgão Supervisor do Artigo 6.4 (que exerce função semelhante à do Conselho Executivo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, com o papel de supervisionar e aprovar projetos e metodologias do novo Mecanismo do Artigo 6.4 do Acordo de Paris). Este órgão foi encarregado num primeiro momento de elaborar recomendações para a aprovação das metodologias do mecanismo do Artigo 6.4, inclusive com recomendações específicas para metodologias aplicáveis a atividades de remoção.

Diante do pouco tempo para desempenhar uma tarefa tão árdua e altamente técnica, o órgão supervisor não conseguiu concluir suas recomendações gerais para aprovação de metodologias.

As recomendações específicas sobre remoções chegaram a ser apresentadas, mas foram criticadas por serem demasiadamente vagas e incluírem conceitos novos e muito abrangentes, sem que tenha havido tempo para consulta com stakeholders.

Assim, muitos países e observadores estão pedindo que essas recomendações sejam revisadas e entregues em um pacote conjuntamente com as recomendações mais gerais sobre a aprovação de metodologias.

Vale salientar que as reuniões deste órgão têm sido abertas para observadores da sociedade civil, bem como é permitida a apresentação de manifestações por escrito, além de um espaço de fala no final das reuniões.

Nestes dias finais da COP, há uma tentativa de se chegar a uma decisão com relação a pelo menos alguns elementos prioritários dessa agenda, ficando os demais pendentes de elaboração em um plano de trabalho para o ano que vem.

O desafio é imenso, mas a cada ano a COP entrega resultados que pareciam impossíveis, com um incrível esforço adicional dos negociadores na reta final, conscientes de que a sociedade global espera que desse fórum de tomada de decisão multilateral venham sinais concretos para permear a tomada de decisão em outros níveis nacionais, subnacionais, públicos e privados.

No caso dos mercados de carbono, sabemos que as expectativas são muito altas e este sinal pode fazer toda a diferença.