A conta da crise climática chega ao Judiciário

Tribunais do mundo inteiro são acionados para atribuir responsabilidades por eventos relacionados à mudança do clima – e a litigância do clima também chegou ao Brasil

Estátua na frente do prédio do STF, em Brasília
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Passados 30 anos da assinatura da Convenção do Clima no Rio de Janeiro, e 15 anos depois de a comunidade científica ter chegado a um consenso sobre as causas e os riscos associados às mudanças climáticas, era questão de tempo para que o assunto chegasse às cortes judiciais.

Não somente as perdas e danos relacionadas a eventos climáticos têm aumentado, mas sobretudo têm evoluído as ferramentas e a ciência para demonstrar o nexo de causalidade entre esses eventos e o aquecimento global, inclusive estabelecendo conexão direta entre os danos e fontes específicas de emissões de gases de efeito-estufa (GEE).

A falta de metas robustas e políticas governamentais efetivas para combater o aquecimento global e a ausência de mecanismos de precificação de carbono e de regulação para a transição de baixo carbono têm trazido incertezas, restando muitas vezes ao Judiciário o papel de dar essas respostas.

No Brasil, essa litigância está apenas começando, e o STF neste momento aprecia importantes ações judiciais sobre o tema, em um julgamento histórico.

Embora seja um fenômeno mais recente por aqui, a chamada litigância climática vem ocorrendo já há algum tempo. Foram registrados  800 casos entre 1986 e 2014, e 1 000 novos casos entre 2015 e 2021, segundo dados da London School of Economics.

As obrigações do Executivo

Em uma das primeiras decisões emblemáticas, Massachusetts v. Environmental Protection Agency (EPA), a Suprema Corte dos EUA julgou em 2007 que estava dentro do dever funcional da agência ambiental americana regular emissões de gases de efeito estufa, com base na norma Clean Air Act.

Esse julgamento foi importante porque representou um reconhecimento da Suprema Corte americana de que a regulação de emissões de GEE não é uma questão política, e sim atribuição legal do Poder Executivo. A discussão sobre o dever de o Executivo regular a emissão de gases de efeito-estufa seria pertinente também no Brasil, pois o país possui extensas legislação e regulamentos sobre emissão de poluentes atmosféricos que não consideram os GEE.

Com a assinatura do Acordo de Paris, em 2015, cresceram os litígios climáticos contra administrações públicas, já que o tratado internacional trouxe um referencial legal sobre as condutas esperadas dos governos nas políticas de descarbonização.

Dentre eles, destaca-se a ação proposta pela organização de ativistas do clima Urgenda contra o governo da Holanda, em 2015. A corte entendeu que, ao deixar de adotar metas de redução de emissões de GEE suficientemente ambiciosas, o governo holandês não cumpriu com seu “dever de cuidado” com a sociedade, assim violando a legislação nacional.

Ações similares foram bem-sucedidas argumentando violação de direitos humanos, como o caso Leghari, em que a demora do governo do Paquistão em implementar sua política nacional de mudanças climáticas foi considerada uma violação das obrigações de direitos humanos do país.

Empresas no banco dos réus

A litigância climática também atinge o setor privado. Em 2020, o fundo de pensão australiano Retail Employees Superannuation Trust (REST) foi processado por um de seus investidores e firmou acordo por meio do qual assumiu o compromisso de zerar a pegada de carbono de todos os seus investimentos até 2050 e divulgar os riscos climáticos gerados pelos seus investimentos.

Na Holanda, em 2021, o caso Milieudefensie v. Shell teve sentença obrigando a empresa a reduzir 45% de suas emissões de GEE até o ano de 2030 em relação aos níveis de 2019.

Existem ainda as ações judiciais que cobram  recursos para medidas de adaptação e ressarcimento pelas perdas e danos causados pelo clima. É o caso da ação instaurada por um morador de Huaraz, nos Andes, cujo lago glacial aumentou de volume com o derretimento do gelo, ameaçando inundar a cidade de 50 mil habitantes.

Com o apoio da organização Germanwatch, Luciano Lliuya ingressou com uma ação contra a empresa de energia alemã RWE, pleiteando a adoção de medidas para reduzir os riscos de enchentes, incluindo  a construção de uma nova represa no valor de US$ 3,5 milhões.

O caso ainda não foi julgado, mas já avançou para a fase de produção de provas. Chama a atenção a inovadora tese utilizada para demonstrar a relação de causalidade entre a atuação da RWE na Europa e o dano ocorrido no Peru: a chamada “ciência da atribuição climática”.

A partir de dados do Carbon Majors Report, de 2014, identificou-se que a RWE – segunda maior geradora de energia da Europa – pode ser responsabilizada  por 0,47% do total das emissões de CO2 globais causadas pela ação humana desde o início da industrialização. E, em 2021, pesquisadores das Universidades de Oxford e Washington confirmaram que 95% do derretimento do gelo no lago de Huaraz é devido à mudança do clima antropogênica.

O recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) está recheado de dados estabelecendo conexões claras entre impactos específicos e a mudança do clima.

Além disso, o documento identifica possíveis perdas e danos relacionados a esses impactos e reconhece o avanço da litigância climática como instrumento de reparação.

Com cada vez mais dados sobre as causas e consequências da crise climática, a ciência deve fornecer mais elementos e se consagrar como instrumento para apuração judicial de danos climáticos e para a cobrança de  ações de mitigação e adaptação climáticas dos atores públicos e privados.

A pauta verde do STF

No Brasil, embora já tenha havido algumas ações judiciais esparsas, estamos começando a experimentar a litigância climática. Em 2020, ações judiciais com a temática do clima foram propostas contra o governo brasileiro perante o STF para denunciar a má gestão do governo na operacionalização de instrumentos financeiros de mitigação das mudanças climáticas – como o Fundo Amazônia e o Fundo Nacional de Meio Ambiente –, e também para questionar as falhas de cumprimento das políticas de combate ao desmatamento da Amazônia, mandatadas pela Política Nacional de Mudança do Clima (PNMC).

Essas ações estão pautadas para julgamento pelo STF nas próximas semanas, juntamente com outras ações relacionadas ao tema de meio ambiente, no que está sendo chamado de “a pauta verde” de julgamentos do STF. A ministra Cármen Lúcia já proferiu seu voto em duas ações da pauta que tratam do desmatamento da Amazônia, as quais julgou em conjunto.

No seu voto de 159 páginas, a ministra argumenta que a Constituição Federal reconhece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental e que há obrigação do Poder Público de protegê-lo para as futuras gerações, criando assim a figura de um Estado Socioambiental. O direito ao clima equilibrado está dentro dessa concepção.

Ela também afirma que a importância da Amazônia para o clima mundial traz uma obrigação para o Estado que vai além dos limites territoriais: “Não é zelo político obrigatório dedicado a um ou outro homem ou povo, senão com todos os viventes do planeta”. Para a ministra, a Constituição brasileira reafirma o “princípio da dignidade da espécie humana (e não apenas da pessoa)”.

Seja para cobrar governos, seja para cobrar empresas, para pleitear reparações individuais ou para buscar mudanças estratégicas que afetam a toda a coletividade, a litigância já é uma arma na luta contra a crise climática, com cerca de 58% de casos bem-sucedidos somente considerados os casos fora dos Estados Unidos.

Enquanto a humanidade estiver ameaçada pela mudança do clima, tudo leva a crer que os litígios climáticos continuarão surgindo e que se tornarão cada vez mais sofisticados e maduros, com o suporte da ciência.

Sem uma  transição para a economia de baixo carbono – justa e inclusiva –, o Judiciário pode ocupar um papel cada vez mais crucial no enfrentamento da crise climática, inclusive aqui no Brasil.