Brasil agora tem supervoto. Como fica o dilema entre inovação e governança?

Modelo se aproxima de experiência internacional, permitindo atratividade sem gerar excessos, escreve Fábio Coelho, da Amec

Brasil agora tem supervoto. Como fica o dilema entre inovação e governança?
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Com a conversão em lei da Medida Provisória 1040 na última semana, a legislação societária brasileira foi modificada para permitir a existência de ações com supervoto. Também conhecidas como super ON ou ainda ações com voto plural, atribuem mais de um voto por ação, algo até então vedado no país, onde até então vigorava a regra de ‘uma ação, um voto’ . 

O texto aprovado incorporou importantes e variadas salvaguardas para permitir que o dispositivo cumpra o papel de estimular empresas a buscar a abertura de capital no Brasil, ao mesmo tempo em que riscos de governança sejam mitigados.

Ainda que a decisão pela jurisdição da listagem esteja mais associada à expectativa de melhor valuation, competição e maior liquidez de bolsas internacionais, não se pode negar que essa estrutura acionária alavancada desperta interesse de companhias em expansão.

Foi o caso de empresas brasileiras que se listaram no exterior, como XP, PagSeguro e Stone. Companhias com forte viés tecnológico demonstram predileção pelo instrumento, permitindo que seus fundadores mantenham o poder decisório mesmo após rodadas consecutivas de diluição do capital. Ao menos em tese, isso preservaria o interesse de longo prazo da própria companhia.

Com a nova lei brasileira, a alavancagem de voto permitirá situação inédita por aqui em que um único investidor que detiver menos de 5% do capital votante da companhia poderá tomar decisões monocráticas e exercer o poder de controle.

Tomando como exemplo o caso do Facebook, Mark Zuckerberg concentra sozinho cerca de 60% do poder de voto de toda a empresa, afastando qualquer possibilidade de os demais acionistas (grandes investidores institucionais) aprovarem assuntos que conflitem com os interesses do fundador.

Para a agenda ESG, é um mecanismo do tipo ame-o ou deixe-o.

Empresas resistentes à transição para a economia de baixo carbono ou que evitem assumir compromissos públicos, por exemplo, podem perpetuar práticas não sustentáveis, e isso independeria da vontade de todos os demais sócios.

Sinais desse tipo de conflito de interesses já foram dados em recentes assembleias de empresas tech nos EUA. Essa concentração de poder explica o motivo de o instrumento receber severas críticas sob a ótica de governança.

Medidas protetivas

O supervoto se tornou polêmico em todos os países onde foi estruturado, sob o receio de que poderia desequilibrar o consagrado princípio de que decisões deveriam ser proporcionais ao poder econômico do número de ações detidas pelo investidor. Quanto mais capital, mais poder.

Com o novo instrumento, a premissa é quebrada, com a ressalva de que esse princípio no Brasil foi contaminado pela existência de empresas com ações sem qualquer poder de voto, as preferenciais (PN).

Trazendo para a realidade brasileira em que as companhias apresentam, majoritariamente, um grupo de acionistas que exerce o controle da empresa, o novo dispositivo teria o potencial para gerar situações desastrosas se não fosse acompanhado de medidas protetivas.

Quando se soma o fato de que, conforme diagnóstico da OCDE, o Brasil ainda não conta com instrumentos adequados de reparação de danos, o problema se torna ainda mais relevante.

Todas essas preocupações fizeram com que várias bolsas do mundo colocassem o assunto em discussão, sendo que alguns países como Japão, Hong Kong, Cingapura e Índia chegaram a alterar suas regras de listagem para incorporar as super ON.

No entanto, em todos esses casos, foram criadas salvaguardas robustas para preservar minimamente a qualidade da governança e para mitigar a possibilidade de entrincheiramento de controladores.

E esse é o caso do modelo recentemente aprovado, considerando a incorporação de várias medidas protetivas.

O principal ponto é que o supervoto só poderá ser aplicado por empresas antes da realização do IPO, o que significa dizer que nenhuma companhia que hoje já é negociada na bolsa brasileira poderá utilizar o instrumento. A lei ainda trouxe redação que preserva a não aplicação do instrumento mesmo que essas empresas sejam submetidas a reorganizações societárias no futuro.

Outro elemento importante foi a aplicação do limite de alavancagem, que faz com que cada super ON poderá valer no máximo 10 vezes o número de votos de uma ação ordinária comum.

Foi aplicado também um limite temporal de sete anos para a vigência das super ações, prazo que pode ser prorrogado indefinidas vezes se aprovado pelos acionistas da empresa — e  detentores da super ação não participam da decisão.

O diploma legal incluiu ainda a aplicação de conversão automática no caso de transferência ou negociação das ações especiais, fazendo com que percam os superpoderes se mudarem de mãos. Foi garantido aos minoritários o direito de recesso, caso não concordem com a implementação da nova estrutura.

Em síntese, o modelo brasileiro recém aprovado se aproxima de uma certa experiência internacional, permitindo atratividade sem gerar excessos.

O dilema entre inovação e proteção é sempre difícil e exigirá bastante atenção para que a aplicação das regras em casos práticos preserve o espírito de equilíbrio presente na construção da lei.

Diante de todas as polêmicas em torno do tema, o debate técnico entre as principais associações de mercado e o Ministério da Economia se mostrou o melhor caminho para aperfeiçoamentos necessários na regulação do mercado de capitais.

* Fábio Coelho é presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec) e professor da FGV