A maré baixou para as startups. E o que o venture capital aprendeu?

Nos últimos anos, captações gigantescas se tornaram a régua de sucesso para as startups, mais que o potencial do negócio em si. Agora, a virada de tempo é uma boa oportunidade para repensar o papel do venture capital, escreve Camila Nasser

A maré baixou para as startups. E o que o venture capital aprendeu?
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Nas últimas semanas, a sensação no ecossistema de startups tem sido de caos. O que se percebia de forma sutil desde o começo do ano ficou escancarado quando os fundos começaram a soltar avisos de tempos difíceis pela frente. 

YCombinator e Sequoia deram início a uma nova onda de manifestos de investidores avisando seus empreendedores que o mantra da vez é “cash is king” – ou o “caixa é o rei”. 

Preparar seus empreendedores para o pior é fundamental, com certeza. Claro que devemos saber dançar a música do momento – e quando o contexto muda, temos que mudar também.

Mas enquanto os fundadores são os dançarinos, os venture capitalists são os próprios maestros. E eles também precisam se adaptar. 

O cenário macroeconômico é o grande propulsor da crise. Os juros altos diminuem a atratividade do capital de risco, e a inflação compromete toda a cadeia. Mas, para além disso, a sensação é de uma correção necessária, dolorosa e que vem para o bem. 

Nos últimos dois anos, o FOMO (Fear of Missing Out ou ‘medo de ficar de fora’) ditou o ritmo das rodadas. 

Era comum vermos investidores destacando que selecionavam negócios em poucos dias ou poucas horas de reunião. Em grau de prioridade, capacidade de encantar pareceu mais importante do que a capacidade verdadeira de execução. 

Na mesma linha, mais de um empreendedores já me reportou o cenário de ter recebido dezenas de ‘nãos’ dos fundos até que o primeiro corajoso disse o sim – e, em um efeito dominó, os antigos nãos se transformaram em um “mudei de ideia”.

O problema do FOMO é a geração de um efeito manada em que a maioria ditava a atratividade do deal, empreendedores de fora do círculo tinham menos acesso a capital e o valor atribuído aos negócios seguia mais a lei de oferta e demanda de um mercado altamente competitiva do que as variáveis concretas para a precificação de potencial de crescimento. 

O fim do ‘open bar’ 

Ainda falando sobre valor, o esporte da vez era a caça aos unicórnios, os negócios avaliados em pelo menos US$ 1 bi. É incontestável que quanto maior o negócio, maior seu potencial de transformação e impacto. 

Mas a sensação é que o impacto do negócio em si ficou em segundo plano – e a ‘unicornização’ se tornou o objetivo final. 

Com isso, incentivamos captações de volumes extraordinários. Com frequência, vimos negócios que haviam captado há pouco levantarem mais uma rodada para engordar o caixa porque o apetite dos fundos estava alto. 

Não me levem a mal, sou fã de muitos dos unicórnios e não me oponho a rodadas gigantescas quanto o capital tem bom direcionamento, e principalmente quando o ‘open bar’ financeiro não nos leva a gastos ineficientes e menos criativos. O problema é quando isso se torna o playbook de sucesso generalizado e mais importante que o negócio em si. 

Nova realidade 

Estamos vendo agora uma mudança em valuations, em premissas de crescimento e na visão de cresça a qualquer custo. Temos ainda um cenário desafiador pela frente e essas correções de mercado atingirão também aqueles empreendedores que estavam em um movimento mais consciente. 

Minha esperança é que não seja em vão. 

Que, para além de enviar recomendações aos fundadores, os VCs também façam suas autoanálises e que possamos, enquanto mercado, nos reestruturarmos de forma mais equilibrada.  Com menos hype nos investimentos, menos FOMO ditando a regra e com mais valor real sendo gerado à sociedade. 

O futuro do VC pode ser mais democrático e equilibrado. E precisa ser.

*Camila Nasser é cofundadora e CEO da plataforma de equity crowdfunding Kria