A Letrus quer ensinar os brasileiros a se expressar — com a ajuda de um Nobel

Startup está usando a inteligência artificial para resolver o déficit de letramento do país

A Letrus quer ensinar os brasileiros a se expressar —  com a ajuda de um Nobel
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Falta amor no Brasil, mas falta principalmente interpretação de texto. 

A Letrus, uma startup fundada em 2015, está usando a tecnologia para tentar resolver esse segundo problema — uma dura realidade do país, onde 89% das pessoas não são plenamente letradas, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Paulo Montenegro.

Uma tecla SAP para quem não é do universo da educação: letramento é diferente de alfabetização. Uma pessoa alfabetizada sabe reconhecer e reproduzir as palavras. Mas só quem é letrado domina efetivamente as regras do jogo linguístico, ou seja, compreende bem um texto e se expressa de maneira efetiva. 

“É um problema estrutural com impacto sócio-econômico brutal. É difícil imaginar uma sociedade justa em que as pessoas não consigam dominar sua língua”, diz Thiago Rached, um dos fundadores da startup e ex-sócio da gestora de venture capital Monashees. 

A Letrus desenvolveu um sistema de inteligência artificial que ajuda no processo de letramento no ensino médio, poupando tempo do professor e tornando a solução muito mais escalável. 

Funciona assim: os estudantes usam a plataforma para fazer suas redações e a inteligência artificial analisa a estrutura dos textos dando respostas imediatas. 

Os alunos recebem um diagnóstico e os professores têm acesso aos dados para preparar novas aulas, sem comprometer seu tempo fora de classe. 

“O nome inteligência artificial sugere algo que não é humano e parece até que não é verdadeiro. Mas dentro do nosso uso de escrita e devolutiva, a gente consegue tornar esse processo muito mais personalizado e, arrisco dizer, humanizado”, diz Rached. 

A startup nasceu da experiência do co-fundador Luís Junqueira em salas de aula como professor. Formado em Letras, ele tem a convicção de que a origem do déficit de letramento reside, em grande medida, na sobrecarga de professores. 

“Se a gente faz muitas atividades de escrita com alunos em sala, significa que vamos levar muitas coisas para casa para avaliar e comentar”, diz. “O professor parte para a múltipla escolha e isso vai esvaziando a prática da escrita, que está conectada com a essência do letramento.”

A Letrus subverte essa lógica e sua solução já ganhou reconhecimento internacional. A empresa acaba de receber um prêmio da Unesco que reconhece o uso de tecnologias para aprimorar o aprendizado na era digital.

Agora, está contando com uma força de uma dupla de prêmios Nobel. O J-PAL — laboratório de combate à pobreza fundado pelos professores do MIT Abhijit Banerjee e Esther Duflo, laureados em Economia no ano passado — está concluindo uma pesquisa para validar o efeito pedagógico do modelo da companhia. 

Quando a covid obrigou as escolas a fecharem, em março, a empresa tomou a decisão de oferecer seu programa de forma gratuita e rapidamente atingiu o limite de sua capacidade. 

Numa curva acelerada pela pandemia, o sistema deve chegar a 72 mil alunos de 400 escolas, entre públicas e privadas, praticamente dobrando o alcance em relação ao início do ano. 

No momento, a empresa negocia contratos com ao menos dois governos estaduais que podem levá-la a ampliar ainda mais seu sua capacidade e seu alcance. 

Acesso X Retorno financeiro 

Diferentemente, de uma startup tradicional, os fundadores da Letrus acreditam que o acesso ao letramento tem quer ser universal — e não uma solução premium só para quem pode pagar. 

“Seria possível nos tornarmos uma grande empresa assim, mas a gente não acredita nessa visão. Estamos testando e validando caminhos para que nosso produto possa ser gratuito para quem não pode pagar por ele”, diz Rached. 

O desafio é grande — e a Letrus ainda não tem uma bala de prata.

Na rede privada de ensino, a abordagem inicial foi vender a plataforma para as escolas diretamente, mas está migrando para um modelo híbrido. Nele, a porta de entrada ainda se dá pelo atacado, por meio da escola, que compra uma versão básica do produto e implanta para todos os alunos. 

A partir daí, as próprias famílias têm a opção de comprar outras camadas do produto, com mais valor agregado. A solução alivia a sazonalidade dos contratos (normalmente sensíveis aos anos letivos na escola), melhora a geração de caixa e amplia o tíquete médio por aluno. 

Na rede pública, os desafios são outros, e bem mais complexos. 

Como quase sempre, o principal é de ordem burocrática. Muitas vezes, não falta dinheiro e nem vontade dos governos estaduais, mas a contratação da plataforma esbarra na falta de um padrão para a compra de inovação tecnológica. 

O caminho tradicional das licitações é lento e, até agora, a Letrus entrou em escolas públicas por meio de institutos parceiros, como a Fundação Lemann. 

Uma das principais alternativas em estudo é oferecer a plataforma gratuitamente para as escolas e monetizar o negócio com a oferta de outras camadas de serviço aos governos. Por exemplo: a Letrus pode cobrar pela implantação de um sistema de gestão que permita às secretarias de educação acompanhar o uso da ferramenta em toda a rede, medir o engajamento de professores e alunos e obter um diagnóstico do aprendizado para balizar a política de ensino. 

Capital paciente

O caminho para achar o ponto de equilíbrio entre o acesso ao produto e a monetização da solução passa por investidores com capital “paciente”. 

“A gente existe para resolver um problema universal e sabemos que não vamos resolver em 5 a 6 anos, que é o ciclo de vida de uma startup para ser vendida ou abrir o capital”, diz Rached. “Somos ambiciosos e nossos objetivos de crescimento são grandes, mas não colocamos o crescimento à frente desse princípio.” 

A Letrus já tinha recebido dois aportes de capital-semente e fechou uma rodada Série A de valor não revelado em dezembro, logo antes dos primeiros casos de coronavírus aparecerem em Wuhan e começarem a fazer tremer os mercados. 

A rodada foi liderada pelo fundo americano de impacto Potencia Ventures, e contou com a participação do venture capital tradicional Canary, da gestora brasileira de impacto Positive Ventures e da Península Participações (family office da família Diniz). 

“A oportunidade de investir na Letrus surgiu quando mudamos o mandato do fundo de participações para contemplar empresas menores. Foi a primeira do nosso portfólio de inovação e se encaixou perfeitamente com o nosso desejo de usar capital privado para resolver problemas sociais do país”, diz Laura Jaguaribe, responsável na Península por investimentos em educação e de impacto.

Embora tenha sede nos Estados Unidos, a Potencia — maior investidora e a única no conselho de administração — tem um pé no Brasil. Sua fundadora, a americana Kelly Michel, é uma das precursoras do investimento de impacto no Brasil, como co-fundadora da aceleradora de negócios sociais Artemisia e da gestora Vox Capital. 

Patrick Maloney, sócio da Potencia, deseja que a plataforma da Letrus um dia esteja disponível para cada estudante em cada sala de aula do Brasil. “Vai levar tempo e paciência, mas parte do nosso valor como investidores é justamente essa paciência.”