A fórmula da Nespresso para salvar suas cápsulas de café da mudança climática

Marca investe em agricultura regenerativa nas lavouras do Brasil, seu maior fornecedor, em parceria com a startup reNature

A fórmula da Nespresso para salvar suas cápsulas de café da mudança climática
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A ciência do aquecimento global é complicada, abstrata e distante da realidade da maioria das pessoas.  

Mas considere sua xícara matinal de café. Esse ritual diário de bilhões de pessoas ao redor do mundo ilustra perfeitamente os riscos de um planeta mais quente – e as potenciais consequências para um dos principais produtos de exportação do Brasil.

Uma combinação de secas e geadas no Cerrado mineiro neste ano causou uma quebra na safra como há muito não se via. Como resultado, o café deve ficar mais caro em 2022. Para os produtores brasileiros – e para os consumidores no mundo todo –, a mudança climática já começou.

O alarme soou na Nespresso.

O Brasil é o maior fornecedor do café embalado nos bilhões de cápsulas vendidas pela Nestlé anualmente. Para garantir o fornecimento de grãos pelas próximas décadas, a companhia começou um projeto para levar técnicas da chamada agricultura regenerativa às lavouras brasileiras.

Quem está reimaginando os cafezais do país é a reNature, uma startup holandesa que tem um brasileiro entre os fundadores e outro como investidor.

A ideia central da agricultura regenerativa é a recuperação do solo. Mas os benefícios potenciais vão muito além de uma terra mais vibrante e saudável. Um sistema naturalmente equilibrado pode ser mais resistente aos desafios de um clima imprevisível, além de mais eficiente e mais lucrativo.

E a agricultura regenerativa pode ajudar a conter a própria mudança climática, ao aumentar a fixação de CO2 no solo.

A palavra-chave é natureza, diz Daniel Costa, coordenador dos projetos da reNature na América Latina.

“Até hoje, o que se ensina nas faculdades de agronomia é aumento de produtividade e controle de pragas com o uso de defensivos agrícolas e fertilizantes químicos”, afirma Costa.

No caso do café, desenhos que incluem a plantação de árvores e cobertura do solo podem garantir a mesma proteção aos cafezais e, ao mesmo tempo, enriquecer biologicamente a terra e garantir as condições de que as plantas precisam para crescer.

Do Cerrado Mineiro para o mundo

 O foco inicial da Nespresso é nas fazendas do Cerrado de Minas Gerais, que têm alto índice de mecanização. O projeto está começando na Guima Café, um conjunto de três fazendas do grupo mineiro BMG.

O plano é que, ao todo, as áreas que adotam as técnicas regenerativas chegue a 250 hectares já em 2022 . Ao todo, a Nespresso compra de mais de 1.200 produtores diferentes no Brasil, uma área cultivada de aproximadamente 120 mil hectares.

“Vamos passar por uma tragédia no ano que vem”, diz Lucimar Silva, responsável pelas operações da Guima Café. “É uma palavra forte, mas os preços vão disparar.”

Silva viu um período de quase cinco meses sem uma gota de chuva. Depois, veio uma geada. Alguns produtores do Cerrado mineiro perderam até 80% da produção.

Eventos extremos como esse podem ocorrer com mais frequência, mas no longo prazo o maior problema é outro: o número que registram os termômetros.

“O café arábica tem uma temperatura de maturação ideal que vai de 18 a 22 graus Celsius”, diz Guilherme Amado, responsável pelo programa de agricultura sustentável da Nespresso no Brasil e no Havaí. “Cada vez mais temos dias de 30, 35 graus. A planta trava.”

O calor excessivo prejudica a produtividade da lavoura e as características que determinam a qualidade dos frutos: doçura, complexidade aromática e acidez.

Num trabalho que Amado descreve como “cocriação”, a Nespresso, a reNature e a Guima Café estão analisando como algumas intervenções baseadas na natureza podem aumentar a resiliência dos cafezais.

De 850 hectares plantados, a Guima separou três para um experimento controlado, que começa agora em dezembro. Num deles algumas linhas de cafezais serão substituídas por árvores, que criam sombreamento, contribuem com a qualidade do solo e podem oferecer uma fonte de renda alternativa. A escolhida para os testes foi o abacateiro.

Em outro, haverá um sistema regenerativo de “média complexidade”, basicamente com o uso de um mix de gramíneas nas faixas entre os arbustos de café. O terceiro hectare seguirá a agricultura tradicional e servirá como controle.

O objetivo é ter, daqui um ano, os primeiros dados que permitam fazer uma comparação direta do sistema regenerativo com o atual.

Uma das métricas mais importantes será a melhoria do solo. “Com exceção de desertos e regiões áridas, não existe terra descoberta na natureza. Sempre vai haver alguma cobertura vegetal.”

Produtores de café já plantam braquiária, um tipo de capim muito usado em pastagens, para preencher as “ruas” das fazendas, como são chamadas as faixas entre os pés de café. A reNature sugeriu uma mistura de algumas variedades.

O primeiro benefício é atrair inimigos naturais do bicho mineiro, a principal praga dos cafezais da região. “Algumas fazendas fazem até oito aplicações de inseticida por safra”, diz Amado, da Nespresso. “Queremos trazer vespas, formigas e joaninhas para fazer esse trabalho.”

O segundo é melhorar a saúde geral do terreno, o que inclui uma maior capacidade de retenção de água.  

Sem fórmulas mágicas

Os dados que serão colhidos no piloto da Guima Café não vão resultar numa receita que possa ser aplicada em outras propriedades – e talvez nem sequer em outras partes das próprias fazendas do grupo.

“Existem diferenças de área para área. Uma pode estar numa baixada, outra perto de uma mata ciliar. O leque de soluções talvez seja o mesmo, mas o desenho específico vai variar”, diz Costa, da reNature.

Se cada propriedade exige uma solução específica, as práticas regenerativas podem ganhar escala? A conta fecha?

Lucimar Silva diz que a pergunta deve ser invertida: sem fazer nada é que a conta não vai fechar. “Temos que nos antecipar às crises”, diz a administradora. “ Um dos nossos fertilizantes compostos custava R$ 1.800 a tonelada no começo do ano. Hoje está mais de R$ 6.000.”

Com um ecossistema em equilíbrio, a expectativa é que as fazendas estejam menos sujeitas a variações do outro lado do mundo ­– a alta dos fertilizantes foi causada pelo aumento do preço do gás natural, um insumo essencial das químicas.

Amado, da Nespresso, fala em um espectro da agricultura regenerativa. Nem todas as fazendas adotarão sistemas complexos, que contemplam todas as técnicas, como cobertura do solo, plantio de árvores e uso de insumos biológicos. Algumas poderão seguir com sistemas mais simples — e mais baratos.

E, pelo menos por enquanto, não existe um checklist ou uma certificação que ateste um produtor como regenerativo. O importante é começar a transição o quanto antes.

Quem vai pagar a conta?

Viver da mão para a boca é um drama constante do setor agrícola. As linhas de financiamento são de curto prazo, mas a transformação vai acontecer ao longo de anos.

Amado afirma que um dos pilares centrais do projeto é manter a lucratividade do produtor. Para isso, ele enxerga uma combinação de três elementos para financiar a transição.

O primeiro é um prêmio pago pelos compradores. A Nespresso tem há 20 anos o programa AAA, que remunera os produtores com práticas sustentáveis. Amado acredita que a agricultura regenerativa vá receber um valor adicional.

Depois, viriam os investidores privados interessados em práticas ESG. “Já existe uma linha de financiamento do BNDES, o programa ABC (agricultura de baixo carbono), mas a burocracia é tanta que poucos conseguem acessar”, afirma ele.

Finalmente, os créditos de carbono. Um solo mais saudável também fixa mais carbono, o que significa a oportunidade de transformar esse sequestro em um ativo financeiro.

Mas, diferentemente das florestas, as metodologias para calcular quanto CO2 se captura no solo ainda estão em desenvolvimento. Costa, da reNature, espera que “em breve” a venda de créditos também funcione como um acelerador.