A corrida para proteger seu café da emergência climática

Nestlé vai investir US$ 1 bilhão para incentivar práticas regenerativas; cafezais são o ‘canário na mina de carvão’ da agricultura

Xícara de café vazia
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A Nestlé, dona das marcas Nespresso e Nescafé, acaba de anunciar que vai investir US$ 1 bilhão até o fim da década num programa para garantir a sustentabilidade – e em alguns casos a própria existência – de seus fornecedores de café.

Na fase inicial, a empresa vai testar modelos que ajudem a disseminar técnicas de agricultura regenerativa, tais como o uso de culturas que recuperem o solo e plantação de cafeeiros à sombra.

Segundo a companhia, os produtores precisam de ajuda financeira e técnica. Mais de 80% das famílias que dependem do café vivem abaixo da linha da pobreza, de acordo com dados da ONG TechnoServe, e não têm condições de fazer os investimentos necessários. 

O plano deve incluir a criação de novas linhas de crédito e incentivos financeiros para os agricultores que se comprometerem a alterar seus sistemas produtivos, por exemplo.

Também estão previstos experimentos com variedades mais produtivas e mais resistentes a doenças e a climas em mutação.

O objetivo declarado da empresa é que 20% dos grãos transformados no seu café solúvel sejam produzidos com métodos regenerativos até 2025, chegando à metade em 2030. Estima-se que a Nestlé compre entre 8% e 9% de todo o café produzido no mundo.

O programa também vai contribuir com a meta anunciada da Nestlé de cortar pela metade suas emissões de gases de efeito estufa até 2030 e atingir a neutralidade de carbono em 2050. 

O cafezinho em risco

A mudança climática pode reduzir pela metade as áreas hoje ocupadas por cafezais nos próximos 30 anos, segundo uma estimativa do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Essa é uma possibilidade particularmente preocupante para a Nestlé. Quando você terminar de ler esta frase, mais de 10 mil xícaras de Nescafé terão sido tomadas.

“Como a maior marca de café do mundo, a Nescafé quer ter impacto nas plantações mundialmente”, disse Philipp Navratil, chefe da unidade de negócios de café da gigante suíça dos bens de consumo.

Batizado de Nescafé 2030, o programa começa com iniciativas piloto no México, na Costa do Marfim e na Indonésia e também deve chegar ao Brasil. Fazendas brasileiras já são laboratório de uma iniciativa semelhante da marca premium Nespresso, realizada em parceria com a startup reNature.

Mas novas técnicas de cultivo podem não ser suficientes para garantir o cafezinho matinal – pelo menos não no preço que se paga hoje.

“Não vai ser no curto prazo, mas a partir de 2030, 2040, com certeza deveríamos estar preocupados”, diz ao Reset Aaron Davis, especialista em café e um dos diretores da área de pesquisas do Royal Botanic Gardens em Kew, no Reino Unido.

Não só com os preços, que já deveriam estar mais altos há pelo menos dez anos para financiar a adaptação das lavouras e os investimentos em pesquisas, diz Davis.

Assim como a transição energética pode reduzir o peso dos países donos de grandes reservas de combustíveis fósseis nas decisões políticas mundiais, uma nova “geopolítica do café” pode se desenhar no futuro.

Nada é garantido – nem mesmo a posição do Brasil como maior exportador de café do mundo.

O café do futuro

Cultivado numa estreita faixa que abraça a linha do Equador, o cafeeiro é um ‘canário na mina de carvão’ para a agricultura nos tempos da mudança do clima. Ou seja, serve como sinal de alerta.

A região é uma das que já apresentam alterações significativas no clima, como mostraram as geadas em Minas Gerais no ano passado.

A planta é muito sensível não só às variações de temperatura e de precipitação, mas também à umidade do solo, o que é especialmente verdade para o café arábica, principal variedade cultivada no Brasil.

“Não teremos fazendas viáveis daqui 20 ou 30 anos se não nos mexermos agora”, disse à Bloomberg David Rennie, responsável pelos negócios de café da Nestlé.

Um dos desafios da agricultura regenerativa é que ela não pode ser codificada em uma receita universal. Cada propriedade, às vezes lotes diferentes dentro da mesma fazenda, exige uma solução individualizada.

Em alguns casos, a solução pode envolver somente a cobertura vegetal da terra exposta. Em outros, mais sofisticados, a substituição de linhas de cafeeiros por árvores que geram sombra (e receita adicional, como a dos abacateiros usados em testes no Brasil).

O objetivo é melhorar a qualidade do solo e aumentar a biodiversidade, o que pode reduzir custos de insumos e aumentar a resiliência contra eventos extremos.

Em busca do café perdido

Essas técnicas são apenas uma das frentes para garantir que o mundo siga tomando 1,4 bilhão de xícaras de café por dia.

Outra iniciativa é a melhoria genética das variedades ou a busca por variedades selvagens que sejam mais adaptadas a um clima seco, por exemplo.

No chamado “velho mundo” do café, que inclui o continente africano, Madagascar e a Ásia, existem 130 dessas variedades, afirma o especialista Aaron Davis. Numa expedição pelo interior de Serra Leoa, ele encontrou espécimes de uma dessas alternativas, a stenophylla.

Essa planta rende um café saboroso e, mais importante, resiste a temperaturas até sete graus centígrados mais altas que as tipicamente toleradas pelo arábica.

A descoberta é empolgante, mas os estudos de campo que vão determinar a produtividade da stenophylla levarão anos.

No caso dos cruzamentos feitos de maneira tradicional, a espera é ainda mais longa: pode chegar a 30 anos. Esse trabalho deveria ter começado há dez anos, e com um foco estreito, afirma Davis.

“Não adianta encontrar uma planta ‘melhor’. Você precisa ter um intervalo de cenários e adaptar seus esforços para cada uma das projeções. Quantos graus a mais ela aguenta. De quantos menos água vai precisar. Precisamos de muito mais pesquisa.”

O DNA do café

A startup britânica Tropic Biosciences quer acelerar o prazo usando uma das inovações tecnológicas mais importantes das últimas décadas: a edição genética.

Conhecida pela sigla Crispr e premiada com o Nobel de Química de 2020 , a técnica envolve, grosso modo, uma manipulação do DNA para incentivar ou suprimir a manifestação de certas características.

Os cientistas da Tropic Biosciences estão experimentando maneiras de cortar pedaços específicos do material genético do café robusta, uma das variedades mais cultivadas do mundo, que resulte numa transformação mais eficiente e mais barata dos grãos em café solúvel.

Como não se trata de uma planta transgênica, ou seja, não há a inclusão de material genético de outra espécie, a expectativa é que esse tipo de produto encontre menos resistência dos consumidores e tenha uma aprovação regulatória mais rápida.

Antes disso, é claro, ele precisa ser desenvolvido. O mundo não vai ficar sem café tão cedo, diz Davis, mas não há mais tempo para esperar.

“O café é um produto emblemático e universal. Ninguém quer ficar sem o cafezinho. E ele vai ser o sinal de uma mudança muito maior que estamos assistindo, em particular dos nossos sistemas de produção de alimentos.”